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MEDICINA NO INTERIOR – Uma história de solidariedade

*Por Gentil Porto

    Era uma vez… Assim começavam as histórias em tempos idos. Histórias que os mais velhos contavam às crianças ao seu redor, nas calçadas das casas, muitas vezes ao brilho da lua ou ao lusco-fusco dos vagalumes hoje esnobemente chamados de “pirilampos”.

      Surgidas do passado como folhas secas agitadas pelo vento, despertam lembranças quase extintas. Histórias de Trancoso e da Carochinha a preencherem o fabular da garotada do meu tempo. Mas a que vou contar nem é de Trancoso nem da Carochinha – aconteceu realmente nos idos dos anos sessenta do século passado quando exercia o meu ofício de médico na pequena cidade de Floresta, no Hospital Regional Dr. Álvaro Ferraz, sertão pernambucano, às margens do Rio Pajeú.

      Era uma manhã ensolarada, como sói acontecer naquela região. Tinha acabado de fazer uma cirurgia, quando sou chamado para atender um paciente que chegara e havia sido colocado numa maca. Sertanejo idoso, a pele curtida pelo sol inclemente, agricultor de um povoado nas cercanias da cidade.

      No exame feito preliminarmente, notei sinais de contratura muscular o que me deixou preocupado. Entretanto, a queixa maior era das dores que sentia num dos calcanhares. Depois da limpeza necessária, constatei um fragmento de madeira enegrecida que ali estava há dias. Após anestesiar o local, retirei o corpo estranho e fiz a limpeza possível. Mas então tive a certeza do diagnóstico terrível: tétano.

      No hospital dispúnhamos do soro antitetânico necessário e algumas ampolas de relaxante muscular Tolserol, então fabricado pelo laboratório Squibb. O soro foi aplicado mas os seus efeitos iriam demorar e o Tolserol era insuficiente. Familiares do paciente foram à cata do produto nas cidades da região. Nada! Apelei então para a Secretaria de Saúde usando um rádio (geringonça enorme, chiadeira, barulhenta) que existia nas diretorias dos hospitais regionais.

A idéia da instalação desses rádios foi de Odacy Sebastião Cabral Varejão, médico do então Pronto Socorro (depois Secretário de Saúde) e que auxiliava o secretário Álvaro Vieira de Melo como diretor do então Departamento de Assistência Hospitalar. Odacy, entusiasta do radioamadorismo se comunicava com o mundo inteiro através do seu equipamento. Tinha uma coluna semanal no Jornal do Commércio denominada CQ – CHAMADA GERAL – CQ, onde transmitia as informações que recebia dos seus colegas de hobby.

      Odacy caiu em campo com todos os instrumentos de que dispunha. O Tolserol estava em falta no Recife; um radioamador de São Paulo comunicou-se com o próprio laboratório na capital paulista, sem êxito. A rede mundial de radioamadores entra em ação. Um deles, nos Estados Unidos, conseguiu o produto despachando-o para o Brasil pela Varig. Em São Paulo outro radioamador recebeu das mãos do próprio comandante da aeronave o medicamento salvador, despachando-o incontinenti para o Recife onde Odacy estava à espera no aeroporto com um avião cedido pelo Governador Paulo Pessoa Guerra, cujo piloto ao receber o medicamento levantou vôo com destino a Floresta.

      Enquanto isso o doente piorava e a ansiedade de nós todos aumentava – toda a cidade participando do drama – à espera do avião.

      Mas o fato é que o medicamento chegou a tempo, o velho sertanejo ficou curado e ainda viveu muitos anos.

      A história repercutiu na imprensa local e também na imprensa médica nacional.

      Concluindo, peço vênia ao nosso colega e amigo Rostand Paraíso para usar o titulo de um dos seus livros:

      “Antes que o tempo apague”!

 *Gentil Porto – Acadêmico titular da Academia Pernambucana de Medicina.

 Recife, maio de 2017.