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II Encontro Luso-Brasileiro de Bioética aprova 15 recomendações relacionadas a pesquisa

Após dois dias de palestras, mesas redondas e debates altamente qualificados, o II Encontro Luso-Brasileiro de Bioética do Conselho Federal de Medicina (CFM) foi encerrado, na última sexta-feira (15), com a aprovação da Carta de Florianópolis.

Construído a partir das reflexões resultantes dos debates com as entidades participantes e membros das comunidades acadêmica e científica também presentes, o documento traz 15 recomendações de estímulo à integridade e ao aprimoramento moral na pesquisa biomédica, defendendo o fortalecimento de compromissos humanitários e humanísticos, éticos e bioéticos, reiterando o compromisso com o ser humano e com a ciência,

A Carta de Florianópolis está estruturada em cinco eixos, sendo eles: a evolução das normas nacionais e internacionais sobre ética em pesquisa; pesquisa envolvendo seres humanos; pesquisa biomédica em animais; desafio das pesquisas sobre aprimoramento humano e moral; e a influência da indústria de fármacos na pesquisa biomédica.

Confira a íntegra do documento clicando no link a seguir: Carta de Florianópolis 2019. Ou, leia abaixo:

15 recomendações ao estímulo à integridade e ao aprimoramento moral na pesquisa biomédica

Os procedimentos experimentais, que atribuem ao ser humano a condição de participante de pesquisa, representam atualmente instrumento importante na busca por avanços médicos e científicos. Infelizmente, o processo histórico registra abusos evidentes no uso dessa ferramenta, os quais deixaram lições para as novas gerações.

O fim da Segunda Guerra Mundial revelou o trágico episódio que vitimou, por meio de experimentos brutais, milhares de judeus e de representantes de outras minorias étnicas. O julgamento desses crimes, pelo Tribunal Internacional de Nuremberg, em 1946, despertou a consciência dos povos com respeito à importância do estabelecimento de limites ao uso de seres humanos em estudos científicos, definindo regras para proteger seus direitos na busca do conhecimento.

Desde então, em diferentes normatizações e espaços de debates, a comunidade científica internacional espelha suas permanentes preocupações com respeito ao tema, num processo contínuo que tem protegido indivíduos e suas comunidades com base em princípios éticos e bioéticos.

Pouco mais de sete décadas, após os eventos de Nuremberg, o II Encontro Luso-Brasileiro de Bioética, realizado nos dias 14 e 15 de março de 2019, em Florianópolis (SC), configura plataforma oportuna para estimular avanços nessas reflexões, na perspectiva de contribuir para o aperfeiçoamento de práticas e de políticas públicas que se debruçam sobre o tema.

Sendo assim, os participantes do II Encontro Luso-Brasileiro de Bioética, cientes de sua responsabilidade com o fortalecimento de compromissos humanitários e humanísticos, éticos e bioéticos, para beneficiar mulheres e homens, de todas as idades e origens, na proteção de suas integridades respeitando suas peculiaridades socioculturais, defendem junto à comunidade científica e aos governos nacionais que sejam adotadas as 15 recomendações seguintes, distribuídas nos cinco eixos sob os quais foram estruturados os debates em Florianópolis.

1) Evolução das normas nacionais e internacionais sobre ética em pesquisa

 

A dignidade humana e a ética no atuar e nas consequências do agir na seara da pesquisa científica envolvendo seres humanos deve ser preservada de comportamentos e procedimentos antiéticos e perniciosos à luz de normas existentes, as quais carecem de constante estudo, acompanhamento e controle por parte dos entes envolvidos. Trata-se de temática atual, pertinente e emergente no contexto dos Direitos Humanos, lastreada em princípios e valores éticos e bioéticos, com o intuito de proteger a vulnerabilidade dos participantes de pesquisa diante dos interesses das grandes corporações, da indústria e do sistema econômico, contemporizados e minimizados, e por indivíduos e instituições que desrespeitam a autonomia e a liberdade das pessoas, em especial nas áreas desfavorecidas. Com respeito a este tema, recomenda-se:

a) O aperfeiçoamento do escopo normativo (legal e infralegal) destinado à defesa dos interesses dos participantes de pesquisa, sem flexibilizações ou ajustes que favoreçam agentes que privilegiam o lucro em detrimento da dignidade dos seres humanos;

b) O fortalecimento de um sistema de controle e monitoramento de projetos de pesquisa com seres humanos, com o envolvimento ativo de instituições idôneas capazes de identificar, denunciar e responsabilizar eventuais abusos praticados;

c) A conscientização e a sensibilização da comunidade científica e da população em geral a respeito de direitos e deveres no campo da pesquisa biomédica, num processo de educação contínuo e de formação cidadã.

2) Pesquisa envolvendo seres humanos

 

No Brasil, com relação aos estudos genéticos, há dois tópicos que exigem atenção especial. O primeiro é a tramitação na Câmara Federal do Projeto de Lei n° 7.082/2017 (originado no PLS 200/2015), que dispõe sobre a pesquisa com seres humanos e institui o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa Clínica com Seres Humanos. Ressalte-se que sua aprovação, conforme a versão atual, compromete a independência da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) ao mudar sua composição em favor da participação governamental. O segundo é a assistência aos pacientes com doenças raras, tendo em vista dois aspectos: a regulamentação do direito do participante de pesquisa ao acesso pós-estudo, em protocolos de pesquisa clínica destinados a pacientes com doenças ultrarraras, atualmente disciplinado pela Resolução CNS nº 563/2017, o que pode trazer impacto na melhora da qualidade de vida e aumento da sobrevida; e a implementação da Política Nacional para Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras (instituída pela Portaria nº 199/2014, do Ministério da Saúde), cujos objetivos são melhorar o acesso desse grupo aos serviços de saúde e à informação, reduzindo a incapacidade por estes transtornos e aumentando a qualidade de vida dos pacientes. Diante desses desafios, recomenda-se:

d) A atuação política de instituições junto ao Congresso Nacional, buscando a sensibilização dos parlamentares federais com respeito à necessidade de se proteger os direitos dos participantes de pesquisa, evitando-se assim mudanças na legislação que representem retrocesso nas normas éticas e bioéticas, como a inversão de valores que torna a parte frágil no campo da pesquisa o patrocinador, atribuindo-lhe ainda ações típicas da conduta médica;

e) A preservação da independência e da autonomia do sistema formado pela Conep e pelos mais de 800 Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs) distribuídos nas diferentes instituições, com base nas resoluções nº 466/2012 e nº 510/2016, ambas do Conselho Nacional de Saúde (CNS), assegurando-lhe condições de cumprir sua função principal, que é a proteção dos participantes das pesquisas em seus direitos e legislação que normatiza a ética em pesquisa envolvendo seres humanos e mantendo-o como um estrutura de Estado, e não de Governo;

f) A garantia de apoio à implementação integral e ao aperfeiçoamento das políticas públicas de saúde voltadas à atenção integral às pessoas com doenças raras, ampliando o acesso e qualificando o atendimento aos pacientes com essas características, inclusive com a manutenção do tratamento efetivo pós-pesquisa àqueles que tiverem participado de estudos científicos.

3) Pesquisa biomédica em animais

A utilização de animais não humanos em pesquisas científicas e no ensino, ainda que recorrente, é motivo de controvérsia em função de limitações morais. Uma delas, a exploração dos animais pelo ser humano por meio de sua instrumentalização, explicita, no âmbito das investigações éticas e bioéticas, o tratamento a ser dado aos seres envolvidos nesses estudos. Tal questão envolve debates que vão do status moral dos animais até a demarcação de sua proteção pela identidade de seres sencientes (capazes de sentir, capazes de sofrer). No Brasil, a Lei nº 11.794/2008 (Lei “Arouca”) regulamentou o uso de animais em pesquisas científicas e no ensino, sendo considerado marco no aprimoramento de sua utilização humanitária, monitorando e avaliando a introdução de técnicas alternativas que substituam sua adoção, reduzindo-o e refinando protocolos experimentais que minimizem dor e estresse, sempre que possível. Além disso, estabeleceu e legitimou o sistema nacional de avaliação ética do uso animal, determinando a criação do Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea). Neste sentido, recomenda-se:

g) A consolidação das Comissões de Ética no Uso Animal (Ceua) em pesquisas biomédicas, como forma de fortalecer o sistema de proteção aos seres não humanos no desenvolvimento de estudos biomédicos, evitando sua exposição a situações degradante, à dor e ao estresse, entre outros abusos;

h) A promoção de ações educativas e de produção de conhecimento junto a grupos e instituições de pesquisa e à população em geral que contribuam para a difusão dos princípios relacionados à ética da proteção animal, contribuindo para que o uso de seres não humanos em estudos biomédicos seja reduzido e, se necessário, conduzido num contexto de respeito e dignidade para com a vida.

4) Desafio das pesquisas sobre aprimoramento humano e moral

O desejo de melhorar é inerente ao ser humano, que busca atendê-lo por meio de métodos conhecidos como “tradicionais”, representados pela educação e a socialização, antigos como a própria humanidade. Esse contexto tem despertado um impulso em buscar o aprimoramento moral através das neurociências e da antropotecnia, com intervenções que se dispersam pela literatura científica, incorporando o uso de vários tipos de psicofármacos, experimentos de estímulos cerebrais profundos, engenharia e seleção genética, etc. É possível melhorar o ser humano do ponto de vista físico e moral? Os procedimentos que visam a recuperação do paciente também podem ser úteis para melhorar o desempenho físico e moral de pessoas sadias. Contudo, esta utilização envolve implicações éticas relevantes, já que se afasta parcialmente do tradicional sentido da medicina hipocrática de tratar pessoas doentes para proporcionar-lhes a cura. Nesse sentido, recomenda-se:

i) A cautela dos médicos e pesquisadores no emprego de recursos já disponíveis para promover o aprimoramento físico e moral dos indivíduos, em atenção aos limites previstos nas normas de pesquisa com seres humanos e de conduta profissional em medicina;

j) A adoção de maior critério no uso de neurotecnologias, como a estimulação transcraniana, no tratamento de algumas patologias ou na condução de estudos clínicos sob o argumento de proporcionar o melhoramento da conduta e do bem-estar humano, tendo em vista o risco real de privação da autonomia e da liberdade das pessoas;

k) O reforço à proibição de técnicas com o uso da engenharia genética visando o melhoramento humano, como já é previsto no campo da ética que interdita, terminantemente, mudanças na linha germinal humana, uma vez que são permanentes, lembrando ainda que tal procedimento pode comprometer os direitos das pessoas vindouras;

l) A realização de mais estudos e debates sobre o tema do aprimoramento humano e moral, que, embora revista-se de aspectos desejáveis, ainda carece de reflexões sobre seus efeitos, riscos e aspectos éticos de sua utilização.

5) Influência da indústria de fármacos na pesquisa biomédica

Em maio de 2005, o Conselho Federal de Medicina (CFM) divulgou sua Resolução nº 1.595, que proíbe a vinculação da prescrição médica ao recebimento de vantagens materiais oferecidas por agentes econômicos interessados na produção ou comercialização de produtos farmacêuticos ou equipamentos de uso na área médica. O texto ainda determina que os médicos, ao proferirem palestras ou escreverem artigos sobre produtos farmacêuticos ou equipamentos para uso na medicina, declarem os agentes financeiros que patrocinam suas pesquisas e/ou apresentações. Cabe-lhes também indicar a metodologia empregada em seus estudos – quando for o caso – ou referir a literatura e bibliografia de base utilizadas na apresentação, quando essa tiver por natureza a transmissão de conhecimento proveniente de fontes alheias. Com respeito a essa temática, recomenda-se:

m) Assegurar as garantias à proteção do participante de pesquisa, principalmente as relativas ao uso de placebo, quando houver tratamento alternativo, assim como a continuidade do tratamento após o encerramento do estudo e a preservação do sigilo, da privacidade e da confidencialidade;

n) O aperfeiçoamento de normas que eliminem situações de conflito de interesse na condução e divulgação de pesquisas biomédicas, assegurando autonomia, isenção e idoneidade no campo científico.

Finalmente, os participantes e instituições representadas no II Encontro Luso-brasileiro de Bioética se colocam à disposição para contribuir com a implementação dessas 15 recomendações e reiteram seus compromissos com o ser humano e com a ciência, entendendo que o avanço do conhecimento, bem como o acesso aos seus benefícios, deve ter como objetivo maior a preservação da vida e da saúde dos indivíduos e de suas comunidades.

Florianópolis (SC), 15 de março de 2019.