Mais de um após o surgimento do novo coronavírus, descobertas científicas sobre a forma como ele age no corpo humano e sobre o que não funciona contra ele ajudam profissionais de saúde a darem uma melhor assistência aos infectados. No entanto, análises divergentes sobre o tratamento da doença, além de criar entraves, tiram a atenção do que realmente deveria ser o foco: a vacina. Enquanto boa parte do mundo está voltado para a imunização, no Brasil, vez ou outra, retoma-se o debate a respeito do uso do kit Covid (cloroquina, hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina).
Mesmo sem ter a eficácia devidamente comprovada, ele chegou a ganhar status de política oficial do Governo Federal, que começou a investir massivamente na compra e na divulgação a partir do começo do segundo semestre de 2020. Se de um lado entidades e especialistas são taxativos ao afirmar que não há embasamento científico para o uso desses medicamentos contra o coronavírus, há quem continue vendo neles a chance de se manter longe do vírus. Contudo, por falta de informação ou não, muitos deixam de lado que o uso destes medicamentos pode causar efeitos colaterais sérios.
Como é o caso de uma dona de casa, de 45 anos, moradora do Recife, que pediu para não ter o nome revelado pela reportagem. Ela conta que diante da enxurrada de informações que começou a receber nas redes sociais, passou a usar mais de um medicamento do kit Covid. Sem prescrição médica e a partir do que leu na internet, ela definiu a dosagem a ser ingerida. “Alguns meses depois passei a ter constantes dores de cabeça, enjoo e diarreia aparentemente sem motivo. Ao procurar um médico ele desconfiou que os sintomas seriam causados por estes remédios. Prontamente deixei eles de lado e senti melhora”, afirma.
Durante a pandemia no Brasil cresceu o número de reações adversas pelo uso de remédios. De acordo com dados do Painel de Notificações de Farmacovigilância da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a cloroquina foi o remédio que mais teve notificações de efeitos adversos no país no ano passado. Ou seja, foi o que mais provocou reações inesperadas em quem tomou. O aumento também foi registrado em relação a outros medicamentos do kit Covid. No entanto, vale ressaltar que o painel reproduz as notificações “suspeitas” recebidas de todo o Brasil. Nele não estão disponíveis os resultados das análises técnicas, que determinam o que causou a reação.
O infectologista e mestrando em Saúde Pública pela Fiocruz Bruno Ishigami alerta que todo medicamento tem efeitos colaterais e os riscos aumentam quando não é indicado por um médico. “Ivermectina pode dar comprometimento no fígado, cloroquina e hidroxicloroquina pode comprometer o coração. Azitromicina pode causar resistência bacteriana”, explica. Para o Ishigami, o uso do kit Covid expõe deficiências na formação médica do Brasil. “Ao utilizar medicamentos sem comprovação científica deixa-se de exercer a medicina baseada em evidências que é o que deveria conduzir o processo de utilização de medicamentos, vacinas e qualquer droga que você vai colocar no ser humano”.
O presidente do Conselho Regional de Farmácia de Pernambuco (CRF-PE), Aldo Passilongo, informa que vários estudos mostram que houve aumento na procura por estes medicamentos durante a pandemia. Ele explica que não é possível pensar em tratamento preventivo para vírus. “Não é porque eu tomei muita vitamina C que não vou pegar a Aids, por exemplo, que é causada por um vírus”, diz. Ele também faz críticas à automedicação. “Temos uma cultura impregnada na população brasileira em usar certos medicamentos sem saber que isto é uma questão de segurança. Falta esclarecimentos dos gestores como um todo e uma compreensão da sociedade frente a própria saúde”, afirma.
TRATAMENTO PRECOCE
Apesar de recomendado por parte da classe médica, são inúmeras as entidades que não recomendam o tratamento precoce para Covid-19 com qualquer medicamento. A Associação Médica Brasileira (AMB) e a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) já emitiram nota conjunta para informar que nenhuma medicação tem eficácia na prevenção da Covid-19. Tal orientação alinha-se a sociedades médicas científicas e outros organismos sanitários nacionais e internacionais, como a Sociedade de Infectologia dos Estados Unidos (IDSA) e a da Europa (ESCMID). Ainda assim, atualmente, há relatos de pacientes com sintomas gripais que saem de consultas com um coquetel de até oito medicamentos. O suposto tratamento começa antes mesmo de o teste de coronavírus ser feito.
O presidente da Academia Pernambucana de Medicina (APM), Hildo Azevedo, reforça que pesquisas feitas até o momento não comprovam a eficácia desses medicamentos contra a Covid-19. “Há pessoas que tomam ivermectina mensalmente para tentar prevenir o contágio do vírus, mas, lamentavelmente, não existe nenhum estudo científico fundamentado e estatisticamente comprovado de que esse tratamento precoce tenha efeito. A única proteção existente contra esse vírus terrível é a vacina, o distanciamento social e o uso da máscara”, afirma. Ano passado, a Organização Mundial de Saúde recomendou o desuso da hidroxicloroquina por falta de comprovação da eficácia diante da Covid, seja na prevenção da transmissão, ou na prevenção de doença severa. O mesmo aconteceu recentemente quando a entidade reforçou que a ivermectina também não deve ser usada.
A polêmica sobre o tratamento precoce ganhou mais um capítulo em março deste ano quando veio à tona que dois meses antes a União havia usado mais de R$ 1,3 milhão em ações de marketing com quatro influenciadores para divulgar campanhas em suas redes sociais. Na noite da última quinta-feira, a Justiça Federal em São Paulo proibiu que a Secretaria Especial de Comunicação Social do Governo Federal promova campanhas publicitárias defendendo tratamento precoce contra a Covid-19 ou promova o uso de remédios sem comprovação científica contra a doença. A liminar também obriga a retratação pública dos quatro influenciadores. Até a última sexta-feira, o Governo não tinha se manifestado sobre o assunto.
Nesta semana, a comissão parlamentar de inquérito (CPI) que investiga as ações da União e o uso de verbas federais na pandemia aprovou requerimentos destinados ao Ministério da Defesa para verificar a participação do Exército na compra e fabricação de medicamentos sem comprovação científica, como a hidroxicloroquina. “Solicitamos os registros de ações e documentos do Governo Federal relacionados a medicamentos sem eficácia comprovada, tratamentos precoces, inclusive indicados em aplicativos como TrateCov, plataforma desenvolvida pelo Ministério da Saúde”, disse o relator da CPI, Renan Calheiros (MDB-AL).
AUTONOMIA MÉDICA
Em nota divulgada aos médicos e a população, em março deste ano, o Conselho Federal de Medicina (CFM) reforçou o posicionamento de que “as autonomias do médico e do paciente na escolha do tratamento devem ser respeitadas, conforme previsto na Constituição Federal e na Declaração Universal dos Direitos do Homem, permitindo-lhes definir em comum acordo e de forma esclarecida suas escolhas terapêuticas no enfrentamento da Covid-19″. No entanto, o texto alerta que a autonomia não isenta o profissional de suas responsabilidades, conforme prevê o Código de Ética Médica.
Tal postura do CFM sempre foi alvo de críticas por parte dos médicos e de outros grupos sociais. Mais recentemente, durante audiência pública da Comissão Temporária da Covid-19 do Senado, o vice-presidente do Conselho, Donizette Giamberardino Filho, afirmou que a entidade não endossa nenhum medicamento para tratamento da doença do novo coronavírus. “Esse parecer não é habeas corpus para ninguém. O médico que, tendo evidências de previsibilidade, prescrever medicamentos off label [fármacos desenvolvidos especificamente para uma doença e que acabam sendo utilizados para outras enfermidades], e isso vier a trazer malefícios porque essa prescrição foi inadequada, seja em dose ou em tempo de uso, pode responder por isso”, disse na ocasião.
De acordo com o presidente do Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (Cremepe), Maurício Matos, o médico deve usar todos os meios disponíveis para melhor atender o paciente com segurança, mas não há espaço para tratamentos que não tenham comprovação científica. “O CFM chegou a se posicionar dando autonomia para que o médico escolhesse o tratamento, mas essa autonomia sempre de acordo com o que é estabelecido como seguro pelas sociedades médicas. O médico que fugir de fazer qualquer tratamento que não tenha comprovação científica pode responder por isso”, comenta o presidente do Cremepe.
Ainda de acordo com Matos, discordância acerca de tratamentos sempre existiu na medicina, mas isto foi mais evidenciado com a Covid diante da urgência pela busca da solução. “É praticamente consenso mundial que essas drogas (kit Covid) não fazem efeito. Acho até que é uma discussão que já deveria ter sido encerrada. Somos um dos únicos países que ainda insiste”, comenta. Para o presidente do Cremepe, polarização, extremismo, além de guerras de conceitos e a facilidade na divulgação de informações nas redes sociais contribui para isto. “A ciência deve ficar fora disso. A medicina não deve levar em consideração se a pessoa é de direita ou de esquerda, se é cristão ou ateu. A ciência é uma só e precisamos cada vez mais focar em toda forma de tratamento eficaz”, acrescenta.
Em coletiva remota, realizada na última quinta-feira, o secretário estadual de Saúde, André Longo, ressaltou que os medicamentos do kit Covid não são mais distribuídos nos hospitais da rede. “Nós não recomendamos a utilização dessas medicações. A gente sabe que, infelizmente, utilizando-se da figura da autonomia médica, alguns profissionais ainda continuam prescrevendo. Temos procurado em todas as vezes que nos posicionamos em relação a isso colocar a necessidade de seguir a ciência e as sociedades de especialidades específicas, que não recomendam a utilização dessas medicações para o tratamento precoce da Covid-19.”, comentou.