A medicina e a literatura ocasionalmente se encontram, seja nas obras artísticas-literárias ou simplesmente no íntimo vocacional de alguns profissionais. Médico, historiador, escritor, poeta e cirurgião plástico: Moisés Wolfenson é um pernambucano multifacetado que uniu, ao longo de sua vida, inúmeras paixões através da sua arte. Nascido em 15 de agosto de 1946, em Recife, o médico formou-se pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) em 1971, no entanto, muito antes disso, ele já havia se apaixonado pela cirurgia plástica e pela literatura ainda na juventude. O Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (Cremepe) entrevistou o cirurgião plástico:
- Quando o senhor começou a escrever e qual foi a vocação que surgiu primeiro: medicina ou a escrita?
Desde adolescente fui sempre um aluno vocacionado para cultura. Nas aulas de trabalhos manuais, era eu quem fazia os trabalhos dos colegas. Passei alguns anos dedicados às artes plásticas lembro, nos aniversários dos amigos os presenteava com pequenos quadros, meus minis quadros. Gostava de ler os clássicos da literatura: Don Quixote / Cervantes, Os miseráveis/Victor Hugo, O homem que calculava/ Malba Tahan, Os irmãos Karamazov /Dostoiévkii e Laços de Família, Perto do coração selvagem e A maçã no escuro, de Clarice Lispector. Fui presidente do grêmio literário do Colégio Israelita de Pernambuco. Assim, comecei pela cultura, literatura em primeiro plano.
- Quantos anos o senhor tinha quando começou a escrever?
Acredito que meu primeiro texto que teve boa repercussão, elogiado pelo nosso saudoso professor de português, Valentin Spósito de Oliveira, foi A FUGA – a história de um rico menino pobre, vestia-se de roupas velhas, rôtas, calçados com meia solas furadas ,indo ao encontro de amizades numa favela, chegando sempre com sacolas de enlatados roubados da dispensa de sua própria casa. Acredito que este conto escrevi aos meus 13 anos.
- Qual o seu primeiro livro?
Iniciamos nossas publicações nos anos 90, concorrendo a um prêmio literário, pelo CREMEPE, fui um dos vencedores na categoria poesia – Livro Paraiso Suspenso
PORTO
Um barco, um balanço, uma vida
à deriva, uma esperança me toma
aos poucos e invade minha alma
O encontro da solidão incidental e
deliberada
Vislumbra um horizonte de magia
No céu um arco-íris delimita a sabedoria
de uma paz inteligente.
Penso, sonho, viajo no real/ imaginário
Fundindo na imensidão azul: céu e mar.
De repente um vento fecha meus olhos e
durmo.
Sozinho, navegando em pensamento, chego
adormecido a
um porto chamado Felicidade
- Qual livro o senhor diria que é a sua inspiração?
O Livro que escrevi e que serviu de inspiração para minha vida foi “Além do Bisturi: Biografia de uma Lenda” – Para tal convivi, aprendi, com Ivo Pitanguy sobre ética, filosofia, cultura, além de técnicas, táticas cirúrgicas e uso de tecnologias.
Um livro que li e tenho inspiração, chama-se “Felicidade Clandestina” de Clarice Lispector. Nossas famílias Wolfenson e Lispector, eram amigas no Leste Europeu, Ucrânia, chegaram ao Brasil, quase na mesma época, foram vizinhos na Praça Maciel Pinheiro e meu pai Félix Wolfenson foi amigo irmão de Clarice, por 10 anos (1925 a 1935), na Boa Vista -Recife.
- O senhor diria que há algum ponto de conexão entre a medicina e a literatura? Se sim, qual?
Como cirurgião plástico pude realizar um sonho de exercer uma especialidade onde arte e ciência estão intimamente ligadas, unidas sempre. Acredito que nossa visão literária e artística contribuiu para crescer na cirurgia plástica contemporânea uma vertente cultural. Já existe na Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, um capítulo de Arte e Cirurgia Plástica, um capítulo de História da cirurgia plástica e o Museu da Cirurgia Plástica Brasileira, que tivemos o insight da sua criação, aqui mesmo no Recife, quando assumi a direção da campanha para fundação do Museu Brasileiro de Cirurgia Plástica, agregando o primeiro acervo, com doações vindas de quase todos estados. Hoje, o museu está instalado em São Paulo com o nome: Museu da Cirurgia Plástica Ivo Pitanguy, que tenho a honra de ser o atual curador.
Antes mesmo de fazer vestibular para medicina, por influência de um primo cirurgião plástico, já sabia que faria cirurgia plástica. Sim, logo no primeiro ano de medicina fui trabalhar como instrumentador de um ícone da cirurgia plástica, Prof. Perseu Lemos. Pertenci à sua equipe por 8 anos; quando sai para ser chefe da cirurgia plástica do Hospital Geral do Recife (HGR). Acredito que como cirurgião plástico, continuava com minha veia artística, afinal, cirurgia plástica é cultura, ciência, tecnologia e arte.
- Quantos livros publicados o senhor tem?
Nossas publicações começaram por rascunhos com citações e de Poesia, depois sobre Arte, crônicas, história, filosofia, em seguida biografias, arte e cirurgia plástica. A saga da cirurgia plástica pernambucana, livros e artigos de cirurgia plástica até o ultimo, no prelo: O Recife de Clarice Lispector – coletânea. Tenho, portanto, 10 publicações.
- No início desde ano o senhor participou de uma reunião com a Secretaria de Cultura de Pernambuco, representando a família de Clarice Lispector em Pernambuco, para tratar do projeto do Centro Cultural Clarice Lispector. O senhor poderia explicar mais sobre esse projeto?
O projeto cultural Clarice Lispector está focado na restauração do sobrado onde morou Clarice Lispector na Praça Maciel Pinheiro, para transformá-lo em um espaço cultural – Museu Clarice Lispector. Projeto arquitetônico já aprovado, sobrado já tombado e aprovado pelo conselho da Santa casa. Portanto, aguardando financiamento federal, etc. Paralelo e já em evolução, um livro com 12 capítulos: “Recife de Clarice Lispector: Vivências e Sentimentos” e um filme sobre o mesmo tema dirigido pela premiada cineastra Katia Mesel.
Nosso objetivo em Recife de Clarice Lispector é realçar sua vivência no Recife, como base de sua formação cultural e afetiva, seus primeiros contatos com o estudo, os diferentes idiomas, proporcionando ao público, conhecer a sua origem, sua história e seu passado. Apresentar seus anseios de adolescente, de descobrir o mundo, suas pequenas travessuras, o sobrado onde morou, por onde andou, estudou, seus amigos, hábitos diários, família, a comunidade judaica, no Recife, de 1925 a 1935.
A ideia tomou corpo e teve o começo antes da pandemia de Covid-19, e depois já 2020 a nossa APC, Academia Pernambucana de Ciências, realizou uma live sobre os 100 anos de Clarice Lispector. Tive a honra de participar, debatendo com ilustres escritores sobre a vida e obra de nossa Patrona da literatura Pernambucana. Relatei minhas lembranças, histórias de sofrimentos das famílias Wolfenson e Lispector, também das alegrias, recebi de fontes privilegiadas, meus avós, e meu pai Félix, seu convívio, sua amizade, suas travessuras juntos com Clarice, jovem adolescente, já perspicaz, inteligente e talentosa.
Conclui que o Recife de Clarice ainda carecia de um registro denso, de dentro para fora, em situar Pernambuco e o Recife, em particular, no mapa histórico Clariceano. Portanto, Vivências e sentimentos de Clarice Lispector, conta com as narrativas de doze escritores pernambucanos, trazendo visões diferentes da permanência por 10 anos de Clarice em nossa capital.
Tivemos a oportunidade de receber os ensaios de 12 autores : Margarida Cantarelli, Tânia Kaufman, Moisés Wolfenson, Geórgia Alves , Rosa Ludermir, Prof. Paulo Dutra, Antônio Campos, Rubia Locio ,Marcia Basto, Sérgio Matta, Márcia Alconforado e Zulene Santana de Lima Norberto, e ficar impressionado pelo alto nível cultural dos autores e seus conhecimentos relativos a vida e obra de Clarice. Feliz de fato em documentar na coletânea com recifenses, o Recife de Clarice; sabedor do que, quando se escreve fica e o que se fala, o vento leva. Confessamos nossa limitação sobre o conhecimento em amplitude de toda obra da autora. Sem dúvida, priorizamos livros, contos, crônicas de Clarice e suas lembranças no Recife, nas duas primeiras décadas de vida na cidade. A beleza e a grandeza das histórias contadas foram oferecidas aos leitores numa bandeja de prata, onde os seguidores, os admiradores, os leitores apaixonados possam se inteirar do Recife de Clarice.
- Uma de suas principais obras, intitulada “Além do Bisturi- Biografia de uma lenda: Ivo Pitanguy” trata sobre a vida e feitos de uma das referências mundiais da medicina. Como o senhor resumiria esta convivência de quase 20 anos que o senhor partilhou com Pitanguy e como ela impactou na sua vida?
O convívio com o Prof. Ivo Pitanguy foi e será sempre minha fonte de inspiração. Com ele aprendi que Cirurgia plástica nada mais é que: Ciência, Arte; Cultura e Tecnologia. Procuro seguir o seu savoir vivre e savoir fair.
- A paixão pela cirurgia plástica aparece em várias das suas obras literárias, como em: Transformações – Arte e Cirurgia Plástica; Além do Bisturi – Biografia de uma lenda; Um século de cirurgia plástica no Brasil e A Saga da Cirurgia Plástica em Pernambuco. Como o senhor se sente ao unir essas duas paixões?
Como escritor e historiador, vivi a história real da cirurgia plástica brasileira. O século XX foi realmente O século da cirurgia plástica brasileira e Pitanguy seu expoente maior. Ao me deparar com relatos de médicos que acompanharam a evolução da especialidade me senti na obrigação de tentar reunir tudo em livro, especialmente depois uma visita que fiz ao pai da cirurgia plástica no Brasil, Rebello Neto, em 1973, quando recebi conselhos, livros raros da especialidade e a noção verdadeira que estava vivendo a história da cirurgia plástica. Até o final do século passado existia uma carência de bibliografia histórica na área da cirurgia plástica brasileira.
Desde a minha formação na especialidade, tive a sorte e o privilégio de estar sempre juntos e poder acompanhar cirurgias, debates, trocar experiências com ícones da cirurgia plástica no Brasil e no mundo. Na França, Paul Tessier, USA, Brook Sekel (Prof. de Harvard), no Brasil, Ricardo Baroud, Paulo de Castro Correia, Antônio Estima, Perseu Lemos, minha orientadora no PhD e co-autora do livro de Laser: Lydia Massako Ferreira, atual presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (2022/2023) e meu amigo, meu professor, meu mestre maior Ivo Pitanguy. Ele que promoveu o lançamento de nosso livro – Um século de cirurgia Plástica no Brasil, na ABL (Academia Brasileira de letras) e concedeu-me a honra de autorizar a escrever sua biografia: Além do bisturi, biografia de uma lenda. Com Pitanguy tivemos memoráveis encontros em Recife, no Rio janeiro e em Paris. Com ele o incentivo para criar o museu da cirurgia plástica, a seu convite, participar da AEXPI (Associação de ex-alunos do Pitanguy), o reconhecimento do nosso viés literário; quando prefaciou dois dos nossos livros. Ele que ocupou a cadeira 22 da ABL e escreveu 20 livros entre temas, científicos e culturais.
- O senhor tem uma obra favorita, de sua autoria?
IVO PITANGUY- Biografia de uma lenda
Neste livro biográfico, tive a honra descrever uma lenda da medicina brasileira, o ícone maior da cirurgia plástica mundial contemporânea: Ivo Pitanguy.
Apresentamos a vida e obra do maior mestre da cirurgia plástica de todos os tempos; e mais, contamos em detalhes os momentos mais marcantes de sua vida científica, intelectual e empreendedora, sempre dirigida a minorar o sofrimento das pessoas no sentido de encontrarem no seu semblante o conceito de normalidade.
Houve um episódio trágico ocorrido em Niterói, em 17 de dezembro de 1961, o incêndio do Grand Circo Norte Americano, com cerca de duas mil pessoas presentes. A participação decisiva de Pitanguy no atendimento às vítimas do dramático incêndio que deixou um saldo mais de 400 mortos e 800 feridos.
O jovem médico Ivo Pitanguy, participou do resgate e viu o trabalho com os feridos estimular o desenvolvimento da cirurgia plástica no Brasil. Professor da PUC-RJ, Pitanguy ia para um plantão na Santa Casa da Misericórdia quando ouviu, pelo rádio, o anúncio do incêndio. Desviou o carro e seguiu para o Iate Clube do Rio. Ele atravessou a baía de Guanabara em uma lancha, (não existia ainda a Ponte Rio-Niterói) e foi ao encontro das vítimas, quase mil pessoas foram salvas e tratadas pelo jovem médico e sua equipe. É fato indiscutível que uma das cirurgias mais complexa é aquela realizada em pacientes queimados.
O livro Ivo Pitanguy – Além do Bisturi – Biografia de uma lenda, mostra também o entusiasmo magistral pela vida exemplarmente demonstrado pelo seu savoir vivre e savoir fair.
Uma lenda real, intensa e repleta de uma luz especial, própria das pessoas geniais.
- Paixão pela cirurgia plástica se repete em quais livros?
Um século de cirurgia Plástica no Brasil
A saga da cirurgia plástica em Pernambuco
Arte e Cirurgia plástica
Ivo Pitanguy, biografia de uma lenda
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