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A NOSSA HOJE VELHA FACULDADE: REMINISCÊNCIAS & CAMINHOS PERCORRIDOS

Com a minha aposentadoria compulsória e oficialmente o término das minhas responsabilidades acadêmico-universitárias, pensei em escrever um texto de recordações a respeito da nossa hoje velha faculdade. Tal desejo começou a ser gestado na última visita às suas instalações, em 05 de dezembro de 2019, quando da solenidade que deu início às comemorações dos nossos 50 anos de formados, ocasião em que fui um dos oradores falando em nome dos pernambucanos. Certamente, a redução das atividades profissionais em virtude da trágica pandemia ocasionada pelo SARS-COV-2 que ainda nos assola facilitou a concretização desse desejo.

A VELHA FACULDADE DO DERBY
Não se pode comentar a medicina praticada no nosso estado no século XX sem mencionar primeiramente a figura ímpar de José Octavio de Freitas. Embora tenha nascido em Teresina em 24 de fevereiro de 1871, como diria Gilberto Freyre, exerceu a pernambucanidade no maior grau de excelência. Após uma pequena estadia no Recife, passou a maior parte da sua infância no Maranhão visto que seu pai fora nomeado pelo Imperador Pedro II presidente daquela província. Com a posterior nomeação do seu genitor para o mesmo cargo na província de Pernambuco, voltou para o Recife e a partir de então desenvolveu um grande amor pela nossa gente e pelo nosso torrão, comprovado pelas ações, atitudes e comportamento que demonstrou ao longo da vida.


Mestre Octavio iniciou seu curso médico na Bahia e o concluiu no Rio de Janeiro em 1893, quando teve a oportunidade de conviver e aprender com os maiores luminares da nossa arte existentes na época, visto que a capital do país era o grande centro cultural e intelectual, além de ter vivenciado as grandes transformações advindas com a proclamação da república. Quase de imediato retornou à nossa capital e como escreveu o saudoso acadêmico e professor Rostand Paraíso ‘Tendo renunciado no Rio de Janeiro oportunidades que se lhe apresentaram, voltou para o Recife, cidade da sua predileção, aqui dando início a uma magistral carreira profissional. Afastou-se pouco a pouco da clientela particular, passando a se dedicar à sua verdadeira vocação de higienista e sanitarista, de homem que visava o bem coletivo, muito mais interessado, como ele próprio afirmava, em ser médico da saúde que médico da doença.

Antes de discorrermos sobre a ‘Sua Faculdade’, como ele mesmo afirmava, Octavio de Freitas foi homem de muitas ideias e realizações. Como presidente, reativou a quase adormecida Sociedade de Medicina de Pernambuco e a sua revista, tendo levantado meios para a construção da sua sede na década de 40, que a abriga até os dias de hoje. Fundou o Boletim Estatístico Demográfico-Sanitário da Cidade do Recife. Criou o Serviço de Verificação de Óbitos, o Instituto Vacinogênico e o Instituto Pasteur. Idealizou e colocou em funcionamento a Liga Pernambucana Contra a Tuberculose e em seguida o Dispensário para cuidar das pessoas afetadas pelo Bacilo de Koch, patologia extremamente comum naqueles idos geralmente afetando os de condições econômicas e nutricionais menos privilegiadas e vivendo em baixas condições sanitárias. Lançou o Jornal da Medicina de Pernambuco, o 1° jornal médico do Norte e Nordeste, e o 3° país, que em um esforço titânico o manteve por mais de 40 anos. Foi Membro Honorário da Academia Nacional de Medicina e Membro Titular da Academia Pernambucana de Letras.
Realizou o 1°Congresso Médico de Pernambuco em1909, que teve lugar no Liceu de Artes e Ofícios, antiga edificação ainda existente localizada ao lado do Teatro Princesa Izabel, mas em estado bastante precário, abandonada que tem sido pelos nossos gestores públicos acostumados a não zelar pela nossa história. Nessa ocasião, haveria de ser discutida e votada a fundação de uma faculdade de medicina, bandeira que seria defendida apaixonadamente pelo Mestre Octavio. Todavia, aconteceu que o destino em uma insana e traiçoeira maldade fez com que naquele exato dia, em um intervalo de horas, morressem de febre amarela os dois únicos filhinhos do bravo médico. Por ironia do mesmo destino, Octavio de Freitas escrevera em 1904 uma extensa monografia sobre as várias epidemias que assolaram a nossa cidade e o estado durante o século XIX e afirmara que graças às medidas sanitárias, muitas das quais por ele introduzidas, aquela terrível infecção virótica estava erradicada da nossa região. Com a ausência do mestre, a proposição foi derrotada sob a argumentação de falta de condições para a implantação de tão complexo estabelecimento educacional. Interessante que se diga que muitos dos importantes médicos que se opuseram à ideia vieram a assumir cátedras e cargos de relevância quando a faculdade finalmente se instalou no começo da década de vinte.


Contudo indubitavelmente seu feito mais memorável foi conseguir instalar a ‘sua faculdade’, cuja primeira aula foi pelo mesmo proferida em16 de julho de 1920. Foram longos 25 anos de tenaz e persistente luta que sumariamente nunca é inapropriado se reescrever para que as gerações que o sucederam, enquanto alunos e professores, nunca se esqueçam dos gigantes em cujos ombros humildemente nos apoiamos.


A luta de Octavio de Freitas pela fundação de uma faculdade de medicina no Recife começou logo após a sua chegada do Rio de Janeiro. Em 1895, já estava ele abraçando a causa e conseguindo do então Governador Barbosa Lima um decreto aprovando a sua instalação, decreto esse que foi aprovado pela Câmara Estadual, tendo sido infelizmente derrotado no Senado (havia senado estadual na república velha) mercê do infeliz parecer do senador Constâncio Pontual que embora médico por razões obscuras vetou a instalação de tão importante equipamento cultural. Ressalte-se que na ocasião só existiam no Brasil as duas faculdades de medicina fundadas por D. João VI em 1808. A guisa de informação, a terceira foi em Porto Alegre em1898, a quarta em Belo Horizonte em 1911, a quinta e sexta respectivamente em São Paulo e Curitiba em 1912 e por fim a de Belém em 1919.


Em 1909, o ânimo do velho mestre não foi esmaecido nem pela morte dos filhos, nem também pela negativa do pleito pelas lideranças médicas do estado. Pelo contrário, continuou na sua batalha e em 1914 já o encontramos conseguindo do Governador Sergio Loreto um decreto autorizando a fundação da ‘sua faculdade’. A primeira reunião da congregação só viria a ocorrer em inícios de 1915, sendo imperioso realçar que entre vários catedráticos fundadores se encontravam alguns que ferozmente haviam se oposto à ideia em 1909. Infelizmente por inúmeras razões, entre as quais falta de recursos financeiros e ausência de um local para a sua sede, passaram-se cinco anos para que o seu funcionamento pudesse ser concretizado. Em abril de 1920, uma nova reunião da congregação se fez realizar, dessa feita com novos catedráticos e com uma redistribuição das cadeiras a serem lecionadas, visto que alguns dos futuros lentes haviam falecido ou tinham decidido pelo ensino de outras disciplinas.


É inacreditável se verificar que entre 1914 e 1915 tenha sido esse bravo lutador vítima de hediondos ataques veiculados pela imprensa escrita e pior ainda por médicos de nomeada na nossa sociedade. É imperioso se nominar a figura do Dr. Raul Azedo, Inspetor da Instrução Pública do Estado e detentor de invejável clientela particular, que travou uma ignóbil campanha contra Octavio de Freitas e a sua ideia, que foi sempre contestada da forma mais elegante que se possa imaginar como se depreende da leitura dos periódicos de maior circulação na época, como o Jornal Pequeno e o Diário de Pernambuco. Dizia contundentemente o Dr. Azedo que a instalação de uma faculdade de medicina na nossa capital, embora já houvesse funcionando as faculdades de direito (1827), engenharia (1895), farmácia (1903) e odontologia (1913), trazia no seu contexto um debacle financeiro, moral e intelectual para o Recife e para Pernambuco. Afirmava ele: Haverá uma falência econômica dos facultativos em razão da pletora de novos profissionais com perda e diluição dos honorários. O estado já abriga 100 médicos como vamos comportar mais futuros colegas. Realmente, uma abjeta reserva de mercado.Ia mais além o infeliz doutor, a chegada de jovens vindos de variados rincões do país será responsável por uma devassa moral, corrompendo os nossos costumes, violando as nossas normas, pervertendo os nossos jovens e desencaminhando as nossas jovens moças!


Tudo isso Octavio enfrentou e altaneiramente proferiu a primeira aula da ‘sua faculdade’ em 16 de julho de 1920. A princípio, a escola de engenharia emprestou alguns pequenos aposentos na sua sede no Largo do Hospício, porém semanas após houve a mudança para um velho prédio localizado na esquina da Rua do Riachuelo com a Rua Sete de setembro, tendo ainda no mesmo ano se mudado para uma acanhada edificação que ainda existe abrigando um decadente hotel, situada na Rua Barão de São Borja 163. No mesmo local viriam também a funcionar as faculdades de farmácia e odontologia. Por vários motivos, inclusive pelo falecimento de alguns, a congregação estabelecida na malograda tentativa de começo das atividades em1915 teve de ser redesenhada quando do seu início em 1920.


Porém, o espirito irrequieto e empreendedor do Mestre não descansava. Achava que a faculdade necessitava de um sítio condizente com a sua função histórica e que deveria se tornar um marco importante da nossa cultura. Foram-lhe oferecidos terrenos vários, inclusive uma grande área onde futuramente haveria de ser construído o Parque 13 de Maio, mas que não o satisfizeram. Finalmente o Governador José Bezerra lhe doava um terreno na Esplanada do Derby, onde outrora existira o Hotel Internacional de Delmiro Gouveia. Com a aquisição do terreno se pôs a contratar o projeto arquitetônico que foi realizado pelo arquiteto grego de ascendência italiana Giacommo Palumbo, o mesmo que posteriormente viria a projetar o Hotel Central, o Grande Hotel, o Hospital Centenário e o Tribunal de Justiça na Praça da República.


Com muito esforço pessoal, o Octávio levantou empréstimos em seu nome na rede bancária a fim de iniciar a construção da edificação que hoje se apresenta imponentemente como uma das relíquias arquitetônicas da nossa cidade, tendo sido tombada mercê de decreto promulgado pelo Governador Roberto Magalhães. Ao mesmo tempo, conseguiu também empréstimos com a Liga Pernambucana contra a Tuberculose, entidade que ele mesmo fundara anos antes. Solicitou ajuda de alguns empresários, todavia o único que demonstrou sensibilidade para acreditar no audacioso projeto foi o industrial Mendo Sampaio, pai do futuro engenheiro Cid Sampaio que governou Pernambuco na década de 50. Ressalte-se que todos esses compromissos financeiros assumidos foram ulteriormente adequadamente honrados e pagos. Ademais, não se deve olvidar, nem deixar de mencionar, que vários professores fundadores também contribuíram com as suas reservas pessoais, havendo parte desses aportes empregados para a compra na Europa dos mais modernos equipamentos para aparelhar os laboratórios da novel faculdade.


Como é historicamente reconhecido, a primeira turma se graduou em 31 de dezembro de 1925 com apenas seis formandos. O quadro de formatura desse heroico grupo de doutorandos se encontra logo à direita no hall de entrada do hoje Memorial da Medicina. A segunda turma que se formaria em 1926 resolveu aguardar para que a cerimônia fosse realizada em 21 de abril de 1927, logo após o belíssimo evento de inauguração do majestoso edifício, o qual contou com a presença dos mais importantes membros e dirigentes da nossa sociedade, inclusive sendo presidida pelo Governador do Estado, Dr. Estácio Coimbra. Contam os cronistas da época, que houve um substancial comparecimento das jovens casadoiras da nossa capital querendo conhecer e se socializar com os acadêmicos de medicina e jovens médicos, talvez futuros e promissores maridos, que pelo ainda reduzido número eram seguramente prendas ardorosamente disputadas.


Os primeiros anos foram bastante difíceis e complicados, como era de se esperar, sobremaneira causados por problemas financeiros e dificuldades em administrar os egos dos medalhões da época. As mensalidades pagas pelo pequeno número de alunos eram de um montante irrisório quando confrontadas com as despesas geradas por tão arrojado projeto. Anos depois, em razão do recebimento de dotações do erário estadual e do reconhecimento pelo governo federal houve razoável equilíbrio orçamentário, obviamente conseguido em virtude do zelo com que o nosso patrono geria a ‘sua faculdade’. As idiossincrasias e vaidades de alguns professores fundadores também foram causa de atropelos nos anos iniciais quando demandavam remanejamento para outras disciplinas, e não infrequentemente exigiam a inclusão de novos docentes seus protegidos e pior às vezes demandavam a exclusão de colegas desafetos. Tudo isso Octavio gerenciava com extrema diplomacia e desvelo.

Octavio de Freitas de imediato se preocupou em encontrar espaços nos hospitais da cidade para a implantação do ensino das disciplinas clínicas e cirúrgicas, as quais seriam localizadas nos Hospitais Pedro II, Santo Amaro, Infantil, Oswaldo Cruz e da Tamarineira. A princípio, encontrou boa vontade dos dirigentes da Santa Casa de Misericórdia, proprietária e mantenedora daquelas instituições. Todavia, com a mudança do provedor e da junta governativa houve quase que uma proibição da entrada dos professores e alunos nos nosocômios, enquanto era exigida uma contrapartida pecuniária inaceitável para que o ensino pudesse ser realizado nas suas dependências. Com a mobilização do Governador do Estado e influentes lideranças locais, o problema foi equacionado e resolvido podendo o ensino ser novamente professado desde que a faculdade se comprometesse a fornecer os medicamentos e materiais de penso que viessem a ser utilizados nas práticas docentes.


Em 1921, logo após a sua transferência para a Rua Barão de São Borja 163, para aumentar ainda mais as dificuldades, eclodiu uma dissenção no seio da congregação, tendo o Mestre sido afastado das suas funções por alguns professores e sido decidido que deveria ser substituído pelo Vice-Diretor, o Professor Gouveia de Barros. Como este precisou se ausentar do estado para assumir a função de deputado federal no Rio de Janeiro, a faculdade ficou praticamente acéfala, com o ensino paralisado correndo o sério risco de fechar as suas portas e naufragando o sonhado e elogiável projeto de termos na nossa capital uma faculdade de medicina. Foram os estudantes responsáveis pelo resgate da nossa escola, conseguiram que o bom senso voltasse a reinar no seio dos professores revoltosos, os quais se aperceberam do erro que estavam cometendo e concordaram que sem Octavio o sonho não iria adiante. Finalmente resolvido o impasse, o Mestre foi reconduzido à cadeira de diretor, com a automática volta às aulas e retomada do ensino.


Entre os catedráticos verdadeiramente fundadores e sacramentados pela congregação de maio de 1920 estão relacionados Oscar Coutinho, Física Médica; Luiz de Góes, Anatomia Descritiva; Monteiro de Moraes, Histologia; Gilberto Fraga Rocha, Fisiologia; Octavio de Freitas, Microbiologia; Mario Ramos, Patologia Geral; Costa Carvalho, Higiene; Ascânio Peixoto, Medicina Legal; João Paulino Marques, 1° Cadeira de Clínica Médica; João Amorim, 2° Cadeira de Clínica Médica; Edgar Altino, 3° Cadeira de Clínica Médica; F. Simões Barbosa, 4° Cadeira de Clínica Médica; Arnóbio Marques, 1° Cadeira de Clínica Cirúrgica; Frederico Cúrio, 2° Cadeira de Clínica Cirúrgica; Paulo de Aguiar, 3° Cadeira de Clínica Cirúrgica; Bandeira Filho, Clínica Obstétrica; Tomé Dias, Clínica Ginecológica; Isaac Salazar, Clínica Oftalmológica; Artur de Sá, Clínica Otorrinolaringológica; Lins e Silva, Clínica Pediátrica Médica; Inácio D’Ávila, Clínica Pediátrica Cirúrgica e Ortopédica; Francisco Clementino, Clínica Dermatológica e Sifilográfica; Ulisses Pernambucano, Clínica Psiquiátrica e Gouveia de Barros, Clínica Neurológica.


Logo em seguida, houve algumas modificações na distribuição das cadeiras. O Professor Ulisses Pernambucano, outro nome venerável da nossa história médica, em um gesto de enorme desapego e plenamente compatível com a sua biografia, não aceitou a sua indicação para a regência da Clínica Psiquiátrica visto que de acordo com a ata de fundação de 1915 para aquela função houvera sido designado o Dr. Alcides Codeceira. O Mestre Ulisses ficou desde logo nomeado como professor substituto da Clínica Neurológica, tendo assumido definitivamente essa cátedra em 1938 com o falecimento do Professor Gouveia de Barros. Em 1943, com a morte de Ulisses no Rio de Janeiro, foi decretada a vacância da disciplina. Apesar de só tido sido professor catedrático por cinco anos, a presença de Ulisses no nosso contexto médico, a sua influência na gênese da escola psiquiátrica de Pernambuco é de uma representatividade imponderável e nacionalmente tem sido fonte de estudo e publicações por parte de inúmeros pesquisadores. O seu interesse pela psiquiatria social e pela higiene mental estão sempre atrelados à nossa história e nunca é demais ressaltar que muitos dos seus posicionamentos e questionamentos lhe renderam durante o Estado Novo inúmeros dissabores e até prisões.


Como passar dos anos, o sonho de Octavio foi paulatinamente se firmando na constelação das mais respeitadas instituições de ensino médico no Brasil e concomitantemente a vida acadêmica continuou a florescer com a introdução de novos recursos humanos originados de concursos públicos de Livre Docência que sobremaneira vieram a desempenhar papel fundamental não só no ensino como também no desenvolvimento da pesquisa científica e por via de consequência no exercício da nossa profissão não só em Pernambuco como também em todo o Nordeste.
Já em 1927, prestaram concurso de livre docência Armando de Meira Lins, Romero da Gama Marques e Hermes Caldas Bivar.

Em 1928, verificamos os concursos de Aníbal Bruno de Oliveira Filho, Silvio da Gama Marques, Valdemar de Oliveira, Martiniano Fernandes e Arnaldo Cavalcanti Marques. Em 1930, entre outros, os arquivos apontam os concursos de Avelino Cardoso, Josué de Castro, João Alfredo da Costa Lima, Valdemir Miranda e Geraldo de Andrade. Em 1933 foram aprovados na livre docência Teodorico de Freitas, Jorge Lobo, Gildo Muniz Melo, José Lucena da Mota Silveira e Luciano de Oliveira. Em 1934 foram aprovados os Drs. Artur Moura, Artur Barreto Coutinho, Zacarias do Rego Maciel e José Pacífico de Araújo Pereira. O ano de 1935 foi marcado por grandes eventos acadêmicos com os concursos de Nelson de Castro Chaves, Rinaldo Soares de Azevedo, Aloísio Bezerra Coutinho, Arnaldo Poggi de Figueiredo, Raimundo de Barros Coelho, José Robalinho Cavalcanti e Gonçalo José de Melo. Entre 1937 e 1943 foram aprovados nesse rigoroso certame os seguintes docentes José Carlos Cavalcanti Borges (1937), René Ribeiro (1937), Luiz Inácio de Andrade Lima (1937), Durval Tavares de Lucena (1940), Rui Neves Baptista (1941), Frederico Simões Barbosa (1942), Joaquim de Souza Cavalcanti (1942), Eduardo José Wanderley Filho (1942), Arnaldo Gouveia Carneiro Leão (1943) e Jarbas Pernambucano de Melo (1943).


Todas essas figuras legendárias da nossa instituição e muitas outras foram fontes de inspiração para as gerações vindouras, tendo alguns sido nossos professores como Hélio Mendonça, Avelino Cardoso, Nelson Chaves, Bezerra Coutinho, Artur Coutinho, Arnaldo Carneiro Leão, Rui Neves Baptista, Raimundo de Barros Coelho, Durval Lucena, Simões Barbosa, Teodorico de Freitas, Romero Marques, Avelino Cardoso, Martiniano Fernandes, Waldemir Miranda, Luiz Tavares, Caetano de Barros, Barros Lima, Salomão Kelner, Amauri Coutinho, Antônio Figueira, Fernando Figueira e por fim o nosso mui estimado e respeitado paraninfo, o Professor Jorge Lobo.


Que plêiade de renomados e compromissados mestres nós tivemos a honra de usufruir dos seus ensinamentos e da sua sabedoria. Talvez nunca, enquanto professores, venhamos seguir os passos dessas figuras veneráveis que sem dúvida marcaram a nossa geração.


Ao longo dos anos, uma longa lista de diligentes ex-alunos e que se fizeram renomados profissionais foi se avolumando. Não podemos olvidar as figuras de Leduar de Assis Rocha (1934), Albino Gonçalves Fernandes Filho (1934), Antônio Persivo Rios Cunha (1935), Silvio Paes Barreto (1935), Gilberto da Costa Carvalho (1935), Orlando da Cunha Parahym (1935). Em 1936, verificamos um ano bastante pródigo em formar médicos que também foram nossos professores e mentores, como também pais de alunos contemporâneos e queridos colegas de turma como Manoel Caetano de Barros (pai do fraterno amigo e colega Alex), Arnaldo Di Lascio, Altino Ventura, Simão Foigel, Oldano Pontual, Noel Nutels, Albérico Dornellas Câmara, Hilário Gurgel, Saulo Suassuna, José Pandolfi, Eleazar Machado, Frederico Simões Barbosa, Gilson Machado, René Ribeiro, Milton da Costa Pinto, Luiz Casado e Durval Lucena. Em 1937, anotamos a formatura de Agrício Salgado Calheiros, Hoel Sette e Rui Baptista. São muitos os formandos do ano seguinte (1938) que se dedicaram ao ensino e anotamos Osias Ribeiro dos Anjos, Luiz Siqueira Carneiro, Ernani Granville Costa, Nelson Moura, Joaquim de Souza Cavalcanti, Jorge Glasner, Rui João Marques, Aristides de Paula Gomes, Frederico Pinto da Cavalheira, Cesar Montezuma de Oliveira Filho, Amadeu Tibúrcio, João Suassuna Filho, Jarbas Pernambucano de Melo, José do Rego Vieira, Jamesson Ferreira Lima, Rosaldo Cavalcante, Sebastião Ivo de Carvalho Rabelo e Frederico Simões Barbosa.

Em 1939, observamos a formatura dos futuros docentes, Waldemir da Cunha Miranda (pai do nosso querido colega de turma Marcelo Antunes), Francisco Peixoto da Silva, Moacir Monteiro de Moraes, Iremar Falconi de Melo, Amauri Domingues Coutinho, Clovis Marques de Almeida, Valdir Correia Pessoa e Antônio Cezário de Melo. Formaram-se em 1940, Vanildo da Cunha Batista, Salomão Kelner, Newton Campos de Souza, Clovis de Azevedo Paiva, Djalma Cavalcante de Vasconcelos, Roberto Salazar da Veiga Pessoa, Fernando Santos Figueira, Francisco Beiró Uchoa, Amauri Vasconcelos, Bianor da Silva Teodosio e Jaldemar de Melo Serpa. Em 1941 tivemos a colação de grau de Fernando Ribeiro de Morais, um dos pioneiros da cardiologia em Pernambuco e pai do Professor e Acadêmico Carlos Ribeiro de Morais. Nesse momento, o cronista bissexto dá passagem ao filho efusivo que pede permissão para nominar o seu pai Hildo Rocha Cirne de Azevedo, também graduando da turma de 1941 e que por razões de saúde e do destino nunca conseguiu singrar a carreira universitária, como também seu tio Nilzo Rocha Cirne de Azevedo que faleceu precocemente em 1947 de uma doença que hoje seria indubitavelmente curável. Em 1942 aconteceu a formatura de outro pioneiro da nossa cardiologia o Professor Ovídio Montenegro. Entre os formandos de 1969 tivemos ainda um genitor formado na nossa faculdade, refiro-me ao Dr. Rivaldo Allain Teixeira (1953), pai do nosso prezado Marcio Allain Teixeira.


Essa relação foi elaborada a partir do livro de Octavio de Freitas, ‘História da Faculdade de Medicina do Recife (1885-1943). Certamente falhas devem ter ocorrido e dessa maneira para maiores pesquisas e informações se recomenda que sejam consultados os escritos do Acadêmico Cláudio Renato Pina.
As décadas de 30 e 40 presenciaram o sonho de Octavio florescer com o ensino básico sendo ministrado no imponente prédio do Derby, enquanto que o clínico-profissional era realizado em vários hospitais de beneficência como o Pedro II, de Santo Amaro e Infantil. Em 1946, com a fundação da Universidade do Recife e sua inserção no Ministério da Educação como órgão federal, e a subsequente anexação de outras instituições de ensino superior existentes na cidade, observou-se um progresso inestimável na vida universitária em Pernambuco.

Concomitantemente, à semelhança dos grandes campi de universidades americanas, o Ministério da Educação adotou o entendimento que, para um melhor funcionamento e inter-relação entre as várias instituições pertencentes à nova estruturação acadêmica nacional, fazia-se necessário que fossem agrupadas em um único local. Em razão disso, foi adquirida uma grande gleba de terras localizada na zona oeste da cidade, nas imediações do bairro Engenho do Meio, pertencente à família Brennand, sítio onde se situava três séculos antes o engenho de João Fernandes Vieira, um dos líderes da Restauração Pernambucana. Essa vasta extensão de terra viria a ser denominada Cidade Universitária e no início dos anos 50 foram iniciadas a construção das primeiras edificações.


A Faculdade de Medicina e o futuro Hospital das Clínicas foram as primeiras estruturas a serem erguidas. Saliente-se que no que concerne ao hospital o mesmo apresentava estrutura e características semelhantes a outras unidades hospitalares universitárias ao mesmo tempo erguidas em outras universidades, como por exemplo, a do Rio de Janeiro, a de Porto Alegre e a de Curitiba que de alguma forma se assemelhavam.
Finalmente, em janeiro de 1958 com a presença do Senhor Presidente da República Juscelino Kubistchek (também médico), do Magnífico Reitor da então Universidade do Recife, Professor Joaquim Amazonas (grande idealizador de todo o projeto) e do Diretor da Faculdade Professor Antônio dos Santos Figueira, o novo e majestoso prédio que se erguia elegantemente isolado em uma área quase que desabitada da nossa capital foi festivamente inaugurado e dessa maneira todo o curso básico foi para o mesmo transferido.


O fruto da imaginação imensurável e da vontade inquebrantável de Octavio de Freitas de servir e atuar como um instrumento de modificação da sociedade cerrou então suas portas, a algazarra sadia dos estudantes não mais se ouvia nos seus agora tristes e abandonados recantos. Reinou o silêncio. O elegante monumento da história médica pernambucana e brasileira emudeceu e foi designado para outras atividades, inclusive com muitos lutando para removê-lo do seu destino de fundação. Porém, ao cabo de alguns anos o bom senso prevaleceu tendo o mesmo voltado às suas origens com a designação de Memorial da Medicina e sediando a Academia Pernambucana de Medicina, o Instituto Pernambucano de História da Medicina, o Museu da Medicina de Pernambuco, a Associação de Ex-Alunos da Faculdade de Medicina e a Sociedade de Médicos Escritores. Todas essas entidades são as guardiãs do nosso passado para que os fatos épicos da nossa profissão não se percam nas brumas da história.


Para manter viva a corajosa trajetória de sonhos, façanhas, dedicação, compromisso e também incompreensões ficaram os arquivos das instituições abrigadas no Memorial, juntamente com as lembranças de vários outros historiadores médicos, também oriundos do mesmo ninho, que se interessaram em pesquisar e documentar o nosso passado para que as futuras gerações não esqueçam de onde viemos e para onde devemos ir nesse universo de incertezas e tragédias comportamentais. Como bem escreveu o Professor Sir William Osler: ‘If you don’t know where you came from, you will not know where you are going to’.


ALGUMAS DÉCADAS APÓS
Voltei ao edifício da nossa faculdade, agora denominado Centro de Ciências da Saúde, no dia 05 de dezembro de 2019, alguns anos depois de ser aposentado por tempo de serviço como Professor Associado de Neurologia e Neurocirurgia da UFPE. Naquela data iniciávamos as comemorações dos 50 anos de formatura e tivemos a alegria de reencontrar colegas que não víamos há alguns decênios, vários rostos que não mais recordávamos, ou mesmo pelo menos no meu caso esquecera totalmente os seus nomes.

Como os oradores das duas principais cerimônias que tiveram lugar em dezembro de 1969 já haviam falecido, a operosa e sempre louvada comissão de festas me elegeu para discursar em nome dos radicados em Pernambuco enquanto que Ney Marques Fonseca proferiu uma alocução representando os formandos vivendo em outros estados. Talvez seja conveniente que nessa memória sejam transcritos alguns parágrafos por mim redigidos.
Transporto-me então àquela inesquecível manhã de uma segunda-feira de março de 1964, quando nos reunimos nesse auditório à espera do Professor Hélio Mendonça, catedrático de Histologia, a fim de iniciarmos a tão almejada jornada.


Quantos sonhos! Quanta expectativa! Confesso que de início aquela tamanha diversidade de pessoas me causou certo impacto. Havia representantes de todos os espectros sociais, culturais, econômicos e políticos da nossa sociedade. Eu viera de um casulo de sete anos vividos sob a rígida formação de um colégio jesuíta (juntamente com vários outros aqui presentes) onde o contato com o mundo exterior ela limitado e setorial, vivência que causara profunda influência na personalidade de um ainda adolescente de 17 anos. A maneira de ministrar o ensino era totalmente diversa e a forma de respondermos a essa nova experiência se mostrava, pelo menos para mim, bastante estranha e quase sufocante. Como consequência, a princípio nos acomodamos em grupos dotados de aspectos confluentes de identificação.

Todavia, e mais importante devo enfatizar, essa aparente heterogeneidade, anos depois pude vislumbrar, foi a amálgama que nos homogeneizou, que nos manteve juntos e que nos guiou até o dia de hoje. Claro que somos diferentes, tivemos histórias de vida totalmente diversas e que pavimentaram a construção da nossa caminhada. Somos contentes com o que edificamos, acho que sim. Porém, o que importa é que esse caminho que nos trouxe até aqui tenha sido calcado nos mais dignos valores da sociedade. Que o tenhamos percorrido sem corromper os costumes, sem violar o código que juramos defender e que nunca tenhamos usado a profissão para a obtenção de objetivos indignos ou pouco nobres. Meu saudoso pai dizia sempre que mais importante do que ensinar medicina é ensinar a ser médico. Com esse lema em mente, mesmo daqueles que não se inseriram na vida universitária, espera-se que na sua labuta diária sempre sensibilizem os mais jovens como sendo esse o fulcro central da nossa profissão.
Voltemos ao ano de 1964 quando ingressamos nessa casa, 1964 é considerado um marco na nossa sociedade, tanto do ponto vista político, como social e econômico, e que modificou para sempre a história do nosso país, para o bem ou para o mal, dependendo das nossas convicções. Raciocinemos então, hoje após mais de 55 anos, alguns fazem questão de mantê-lo vivo mercê da manipulação e dos interesses pessoais daqueles que apoiam ou daqueles que visceralmente se contrapõem, produzindo uma inconcebível e lamentável divisão na nossa população. Viajem comigo ao passado, ao entrarmos nessa instituição 1964 distava 34 anos da revolução de 30, fato que também mudou os destinos da pátria e não me recordo de aqui discutirmos esse evento da nossa história. Eram menos de 30 anos da intentona comunista de 1935 quando a humanidade adentrava o portal da guerra fria. Faziam menos de 20 anos do maior genocídio da humanidade que foi o holocausto, os judeus já tinham praticamente se reconciliado com a Alemanha e os germânicos ocidentais já quase completamente haviam alcançado a pacificação, tentando apagar da sua história o escabroso regime nazista. Estávamos a menos de 20 anos do término da Segunda Guerra Mundial, tragédia que dizimou 50 milhões de pessoas e àquela época muitas nações aliadas e as potências do eixo já haviam quase que completamente cicatrizado as suas feridas. Digno de nota, no início do nosso período acadêmico, não parecíamos interessados em conectar nossas vidas a tão importantes e hediondos eventos. Meditemos!


Na esfera médica, distávamos menos de 25 anos do grande fato que modificou completamente a nossa profissão que foi a introdução da penicilina na Universidade de Oxford em 12 de fevereiro de 1941 e que valeu em 1945 o Prêmio Nobel de Medicina aos seus descobridores. Entendo que essa descoberta transformou a medicina, tirando-a de uma atitude de quase panaceia para uma perspectiva científica e baseada em evidências. Vejam os mais jovens aqui presentes o que os seus pais e avós vivenciaram mesmo sem nos darmos conta do que estávamos participando. Com base em eventos ocorridos em passado recente, onde a conciliação foi prevalente e no auge da nossa maturidade lutemos para reinstalar a paz e a fraternidade na nossa nação.


Continuemos, a despeito de fatos que dividiram o Brasil, às vezes não nos apercebemos que vivemos e estudamos medicina em uma década que foi um marco e talvez a mais importante dos últimos 100 anos. O computador foi introduzido em níveis institucionais, o homem foi ao espaço e chegou à lua, Woodstock mostrou que a guerra do Vietnam, como quase a todas as guerras, era imoral. Os jovens foram às ruas em Paris exigindo um rearranjo da sociedade e os Beatles trouxeram, além da música, uma modificação no comportamento da juventude. A mulher encontrou o seu espaço e a sua independência foi favorecida pela descoberta da pílula anticoncepcional. A luta pelos direitos humanos, a proteção aos povos oprimidos, o combate à fome e a preservação dos recursos naturais do planeta se tornaram tópicos de preocupação fundamental por parte das Nações Unidas e pelas instituições a ela ligadas. Concomitantemente, a perversa e ignóbil discriminação racial nos Estados Unidos foi pela primeira vez criminalizada e que serviu de exemplo para outras situações observadas em vários locais do mundo.
Tudo isso nós presenciamos meus amigos, e talvez não tenhamos nos dados conta, porém precisamos contar aos nossos descendentes para que novos erros não venham a ser cometidos. Olhando para traz, é absolutamente fascinante recordar o que acontecia ao nosso redor durante os seis anos nessa casa.

A partir de então, a velocidade de aquisição do conhecimento se tornou avassaladora e impossível de acompanhar mesmo para o cérebro mais privilegiado. Durante os primeiros cinco anos da década de 70, no início da nossa trajetória profissional, a humanidade acumulou conhecimento equivalente ao até então adquirido. A partir do século XXI, a cada ano duplicamos o que sabemos. Resta ver o que nos espera com o advento do computador quântico quando a inteligência artificial será definitivamente implantada. O que acontecerá? É quase impossível prever.
Voltemos ao nosso tempo de estudante, sem receio também posso afirmar que estudamos durante a década áurea da nossa instituição. Esse prédio que nos recebe novamente hoje, como viram, encontra-se imperdoavelmente mal preservado e degradado. À época o mesmo se mostrava extremamente belo e novo, pois houvera sido inaugurado há apenas seis anos na inesquecível gestão do Professor Antônio Figueira. Da mesma maneira, hoje eu posso afirmar que o compromisso e o valor dos nossos docentes naquela época eram maciçamente superiores aos demonstrados pelos mestres de hoje. Para aqueles que optaram pela carreira docente, nunca poderemos ser comparados a um Hélio Mendonça, Nelson Chaves, Bezerra Coutinho, Barros Coelho, Salomão Kelner, Amauri Coutinho, Romero Marques, Barros Lima, Manoel Caetano, Luiz Tavares, Jorge Lobo (nosso paraninfo), Antônio Figueira e Fernando Figueira que considero o maior ‘scholar’ da nossa faculdade em toda a sua história.


Não se trata de estarmos velhos, ou idosos, e tentados a pensar que o passado era sempre melhor. Certamente vivíamos numa sociedade mais sadia, mais ética e mais humana. Será que o computador tem culpa nesse processo pelo quase desaparecimento do diálogo, mesmo no interior dos nossos lares?


Não tenho dúvidas em afirmar que a sociedade, sobretudo a brasileira, está doente. O nível de corrupção e a tragédia comportamental varrem o país e esse mar de lama cai também lamentavelmente no colo de boa parte de membros da nossa profissão. É vergonhoso se detectar que um número expressivo de profissionais de medicina recebe benefícios financeiros de fornecedores para colocar próteses e dispositivos os mais caros possíveis, muitas das vezes sem qualquer indicação, a fim de receberem 10 a 15% de propina. Gostaria que conseguíssemos prender essas maçãs podres e os alijássemos do nosso convívio. Porém, às vezes se torna mais fácil prender um político corrupto do que um médico sem caráter. Não importa o valor financeiro do dolo, honestidade é adjetivo qualitativo e não quantitativo, novamente insiro aqui palavras do meu saudoso pai.


Faz-se absolutamente necessário que tentemos trazer essa nossa bela nação para os caminhos do bem. Que orientemos os nossos filhos e netos a respeitar os pilares mais fundamentais de uma sociedade sã, sobretudo na defesa intransigente dos valores da família, baseados em princípios bíblicos, religiosos e éticos. O núcleo familiar bem conduzido e harmônico é condição essencial para que consigamos uma convivência saudável, nos resgatando, por conseguinte da situação preocupante com que nos defrontamos.


Voltando a navegar pelas divagações que inundam a minha mente nesse momento e que de forma muito magnânima vocês concordaram em dividi-las, solicito que nos transportemos para aquela quente e ensolarada tarde de 08 de dezembro de 1969 quando em nossos corações eram somente alegria, sonhos e agradecimentos. Comparemos então a medicina que nos legaram ao recebermos o diploma de médico com aquela que convivemos 50 anos após
O progresso é impressionante e inacreditável. A tecnologia revolucionou a nossa profissão. Não existem recantos do organismo humano que a imagem não penetre. Não mais investigamos apenas a anatomia e a patologia ao contrário também analisamos a fisiologia de cada órgão ou sistema. Adentramos de forma minimamente invasiva todos os recantos do nosso corpo. Conseguimos tratar patologias outrora inabordáveis através da introdução de finos cateteres e podemos curar doenças sem absolutamente qualquer incisão cutânea mediante a utilização de feixes altamente seletivos de materiais radioativos. O transplante de órgãos se tornou corriqueiro em todos os centros dotados de mediana complexidade e não muito longe antevejo que não mais os removeremos de cadáveres ou doadores, mas os produziremos a partir de uma única célula ou por meio uma impressora 3D. A quimioterapia se transformou completamente com o advento das terapias alvo a partir dos conhecimentos de citogenética. A patologia deixou de ser apenas descritiva dos tecidos anormais para buscar o diagnóstico molecular e, por consequência nortear o prognóstico e tratamento. A engenharia genética começa a ser capaz de curar ou bloquear a progressão de patologias antes consideradas letais e incuráveis. Os vírus a princípio mortais estão a maioria deles sob controle, embora a cada dia apareçam novos inimigos. É um admirável mundo novo, imagino que nem um Júlio Verne contemporâneo poderia prever.


Todavia, esse estrondoso progresso, eu confesso com algum pesar, está nos tornando quase que autômatos, nos levando para longe dos pacientes, tornando a nossa preocupação menos humana e nos desviando para uma inconcebível perda da visão social da medicina. Lamentavelmente, estamos deixando de ser médicos no sentido mais belo da palavra e infelizmente apenas técnicos. Estamos abandonando os dogmas hipocráticos quando participamos de estudo randomizados prospectivos duplo-cegos e que são baseados no conceito discutível da ‘equipoise’. Estamos perdendo o sagrado hábito de chamarmos o paciente pelo seu nome e de conhecermos a sua família. O paciente se torna aquele do leito sete ou o portador do glioma cerebral. Estamos nos esquivando de colocar a mão no ombro do enfermo e de fazê-lo ciente que somos o único aliado que ele tem contra a doença. Olvidamos o conceito ‘Osleriano’ de conversar com o paciente, porquanto como dizia o Professor William Osler ‘converse com o doente porque ele lhe está dizendo o diagnóstico. Com tristeza informo que cada vez mais operamos ressonâncias magnéticas e tomografias ao invés de pacientes visto que o conflito de interesses é cada dia mais prevalente na nossa realidade. Não levamos em conta que quando alguém adoece todos os membros da família também adoecem. Olvidamos quão frágeis nos tornamos quando mudamos de lado no ‘bureau’ do médico e enfrentamos a situação de sermos pacientes, principalmente quando somos portadores de doenças graves e eu posso assegurar por experiência própria.
Todos sabem que adoro operar, não sei por quanto tempo ainda, mas hoje o que me proporciona maior prazer é ser médico e abraçar o paciente afirmando: conte comigo, estou ao seu lado.

Sem dúvida, há 50 anos os nossos predecessores eram muito melhores médicos embora providos de uma tecnologia rudimentar. Retornando à cerimônia, cheguei talvez 45 minutos mais cedo, antes de procurar os colegas tive vontade de fazer um pequeno tour sentimental a fim de visitar as minhas lembranças daquela majestosa edificação e dos inesquecíveis anos ali vividos. Fiquei deveras chocado com o que me deparei, o abandono era flagrante. O espaço que dá acesso aos elevadores e onde se encontram várias placas de formatura, inclusive a nossa que tem sido aditada nas datas e comemorações mais representativas, encontrava-se sujo e mal cuidado e de imediato me deparei com o outrora bonito recanto quadrangular verde que abriga o busto de Octavio de Freitas, também mal preservado com um verdadeiro matagal que quase encobria o pobre Mestre.


Adentrei no antigo salão nobre, hoje Auditório Jorge Lobo, onde se realizaria o nosso evento e verifiquei para minha grata surpresa que, diferentemente do restante do prédio e arredores, o recinto se encontrava em ótimo estado de conservação. Ao contrário de 55 anos atrás, agora era dotado de um sistema de ar condicionado e com um corredor central que facilita a circulação dos presentes. As emblemáticas grandes cadeiras giratórias em cima de um pequeno tablado, e onde sentavam o diretor e os respeitados membros da congregação durante os acontecimentos acadêmicos mais importantes pareciam ser as mesmas. Nesse momento, os meus pensamentos se voltaram para os devaneios de um ainda adolescente que sonhava um dia se ver definitivamente vestido com as imponentes vestes talares típicas das becas professorais e que naquelas cadeiras pudesse sentar.


Procurei um sanitário junto ao auditório e tive náuseas nele penetrar. O cheiro era insuportável, a descarga não funcionava e praticamente não havia água nas torneiras. Andei um pouco pelos jardins que circundavam aquela área, no passado com bem preservadas alamedas e um belo relvado onde em pequenos lagos viviam algumas espécies de peixes decorativos. Para minha tristeza, os reservatórios que não estavam secos eram preenchidos por uma água escura e mal cheirosa, viveiros ideais para o Aedes Aegypti. Os antigos biotérios localizados ao longo do andar térreo onde se localizava Fisiologia não mais existiam e estavam transformados em malcuidados depósitosPela imunda escada por detrás do auditório subi ao primeiro andar a busca do espaço em que se localizava a bela e muito bem cuidada biblioteca. Não esperava que lá estivesse porquanto há vários anos fora transferida para outro local do campus após ser erigida a Biblioteca Central do Centro de Ciências da Saúde. Deveria não ter tido a ideia de para lá me dirigir a fim de poder manter as recordações daquele fantástico local de estudo e aprendizado. O espaço havia sido transformado em sede do diretório acadêmico e se encontrava sujo e depredado, com cadeiras e mesas que não recebiam há muito qualquer limpeza e davam apoio a uma cantina que certamente não passaria pela mais comezinha inspeção da vigilância sanitária. Por todos os lados se via paredes pichadas e cartazes pintados com antigos e obsoletos chavões políticos dignos da guerra fria, havendo também um espaço onde se vendia camisetas e outros apetrechos adornados com os rostos dos mais sanguinários e assassinos ditadores do passado. Que tristeza! Quanta pena dessa juventude! Lembrei-me de imediato dos jovens da minha época que mesmo tendo ideias de alguma maneira semelhantes se portavam de forma bem mais civilizada, principalmente sem perder de vista que naquele templo do conhecimento o fito maior era ser médico.


Desci pela rampa onde os alunos do sexo masculino ficavam a esperar a descida das colegas do sexo feminino para recebê-las com assovios e elogios à sua beleza. Algumas tinham receio de passar por aquele ‘corredor polonês’ e procuravam outros trajetos, mas a maioria tomava tais manifestações como uma forma de elogio à sua formosura e por certo ficariam desapontadas se não fossem devidamente ovacionadas. Ao final da rampa comecei a encontrar e abraçar os calouros de 1964 que começavam a chegar. Mas não pude me desligar ainda do passado e continuei tentando ouvir os gritos de alegria daquela juventude sadia de então, todavia com o presente tomando conta dos meus pensamentos procurei vislumbrar onde estariam os jovens estudantes de hoje, apenas o silêncio, não os detectei naquele ponto de encontro tão frequentado outrora, parecendo não haver atividade docente naquele dia.
Era hora de voltar à realidade e ao Auditório Jorge Lobo. Como o movimento e o número de pessoas havia aumentado, comecei a rever rostos conhecidos, já enrugados e modificados pelo tempo. Outros eu não reconheci e nem eles me reconheceram. Ao sentar, procurei me certificar que todas as páginas do discurso que proferiria estavam dentro do envelope que tinha em mãos. Tive tempo ainda de refletir sobre as tristes constatações daquele pequeno passeio pelos arredores e me perguntei: qual a causa dos atuais gestores terem tanto descaso com o bem público. Como será possível que um diretor ou responsável pela unidade ao passar por aqueles setores não detecte as mazelas que evidenciei, que não se revolte e não tome as adequadas providências. Obviamente, o que observei não era causado simplesmente por falta de recursos financeiros, contudo sim em consequência do descaso, do olvidar para com as obrigações e sem dúvida condizente com o momento anárquico e disfuncional que ora vivemos. Continuei a pensar, quando achávamos que poderíamos mudar a sociedade, haveríamos de imaginar que em 2019 pudéssemos observar esses fatos tão merecedores de reprovação, capazes de tirar as nossas esperanças e testemunho da falta de compromisso das nossas lideranças? Porém, a cerimônia estava começando e eu deveria apreciar o que de bom estava ocorrendo naquele momento e agradecer a Deus por ter me dado a oportunidade de desfrutá-la.


Foi um tocante evento, pleno de emoções e belas recordações. Foi presidido pelo Professor Silvio Caldas Neto, diretor do agora restaurada Faculdade de Medicina, tendo na mesa diretora se sentado alguns professores ainda vivos e por nós homenageados há 50 anos, como Fernando Aguiar, Rildo Saraiva e Arnóbio Marques. Todos se pronunciaram, evocando o passado e a nobreza da nossa profissão. Por fim, eu e Ney Fonseca fizemos nossos discursos, trazendo mensagens e vivências guardadas há dezenas de anos nas nossas memórias. Ao término, continuamos o congraçamento com um agradável lanche onde a troca de abraços era entremeada pela evocação de fatos vividos naquele recanto quase que sagrado, como também pelo manuseio de antigas fotografias tiradas durante os festejos da formatura e trazidas por vários companheiros.
Ao me retirar, durante o caminho de volta comecei a meditar sobre a trilha que me levou desde a infância a perseguir o ideal de estudar medicina e ser admitido especificamente naquela escola.

O CAMINHO PERCORRIDO PARA ESTUDAR NA FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
Desde os primeiros anos do curso secundário todo cursado no querido Colégio Nóbrega tinha certeza da minha escolha em ser médico. No passado, o curso secundário era dividido em dois períodos, o primeiro denominado ginasial com duração de quatro anos, e o segundo abrangendo três anos que na verdade era dividido em dois cursos. O curso clássico para aqueles que pretendiam cursar direito ou outras ciências humanas e o científico para os que tinham por objeto outras profissões. Os conteúdos programáticos do científico e do clássico eram totalmente diferentes e se por ventura houvesse uma modificação na escolha do rumo profissional o estudante teria uma grande dificuldade ao prestar o vestibular. Os cursos primário e ginasial eram lecionados pela manhã e o científico e clássico no turno da tarde.


No científico, durante o primeiro ano todos estavam juntos e a partir do segundo havia outra partição entre os que pretendiam seguir para medicina ou engenharia. As matérias lecionadas eram às mesmas mais das vezes, porém o enfoque era ministrado de forma diferente. Alguns, fundamentados na ideia de ter mais tempo para estudar para o vestibular, decidiam no terceiro ano se transferir para educandários onde não houvesse maior exigência no que tange as provas regulamentares e até mesmo a frequência. Obviamente, nunca passou pela minha cabeça sair daquele ninho que me abrigava desde 1956. As aulas do científico, como também do clássico, eram iniciadas às 13,00 horas e na maioria dos dias terminavam às 17,30. Um fato bastante apreciado pelos estudantes era que não se necessitava usar as fardas tradicionais dos primeiros anos e os padres faziam vista grossa para os que, como era então comum entre os jovens, iniciavam-se no péssimo hábito de fumar.
Para os que queriam estudar medicina a ênfase era para química, física e biologia. A língua inglesa era também ensinada visto que constava do vestibular da Universidade Federal, embora não fosse exigida nas provas da Faculdade de Ciências Médicas.


Devo bastante do que sou à rígida formação religiosa e cultural propiciadas pelos padres jesuítas. Desde o início, para um pré-adolescente de classe média cujo pai com muito esforço lutava para pagar as elevadas mensalidades, eu pude denotar que a luta pela ascensão social e pelo sucesso profissional necessitava se iniciar já naqueles anos. Era evidente e necessária uma dedicação imensa para que se pudesse sobressair nos estudos a fim de poder conquistar o seu futuro espaço na sociedade. Além do mais, havia um permanente estímulo a busca da primazia nas provas escolares como também às atividades esportivas, tanto que pertencendo à seleção de basquete defendi por quatro anos as cores do nosso educandário nos jogos colegiais, na época acontecimento deveras importante da vida da cidade e que tinha lugar nos meses de setembro. Jogar basquete pelo Colégio Nóbrega e também pelo Sport Clube do Recife renderam grandes amizades e que são devidamente preservadas até os dias de hoje.

Entre aqueles que almejavam ser médicos, uma boa parcela dos que podiam pagar se matriculava simultaneamente nos chamados cursinhos ou tinham aulas avulsas de algumas disciplinas. Os cursinhos pertenciam ou eram liderados por proeminentes professores com grande experiência em provas de vestibular, sendo que alguns deles lecionavam nas duas faculdades então existentes. Um dos mais procurados era o chamado ‘Cursinho da Faculdade’ que se dizia ser de propriedade de alguns docentes, inclusive responsáveis pela formulação das questões do temido vestibular e que as elaboravam tendo em conta o conteúdo programático ministrado.


Em 1963, cursando o 3°ano do curso científico me matriculei no citado cursinho localizado na Rua Fernandes Vieira, junto ao Banco de Sangue do Recife. Havia três turmas no turno da tarde e outras três no período noturno, que se iniciavam respectivamente às 14,00 e 19,00 horas. As disciplinas ministradas eram biologia, química e física, cada uma com duração de 60 minutos e que ocorriam praticamente sem intervalos. Como as aulas no Colégio Nóbrega eram no período da tarde, tinha de frequentar o curso noturno. Nas terças-feiras não havia aula e o professor de biologia, Dr. Mota Barbosa, que era também assistente da cadeira de patologia geral da então FMUR., a cada seis semanas levava uma das turmas para assistir aulas práticas no majestoso edifício da faculdade. Esses eventos impulsionavam ainda mais os nossos sonhos de adentrar como aluno naquela veneranda instituição. Nessas situações, tínhamos de enfrentar as vaias dos veteranos nos chamando de ‘feras burras’ e de sobreviver aos ataques dos famigerados Sputnik que eram luvas cheias d’água que eram sem piedade contra nós arremessados e que no mínimo nos deixavam completamente encharcados. Como proteção, havia colegas que levavam até capas de chuva.


O preço do ‘cursinho’ era bastante salgado para meu pai, já arcando com a mensalidade do Colégio Nóbrega e que também não era barato. Todavia, havia a possibilidade de se ganhar uma bolsa de estudos pois ao final de cada mês aconteciam provas das três matérias sobre os conteúdos ensinados e o aluno (a) que tirasse em todas a nota 10 não precisaria pagar a mensalidade seguinte. Eu só paguei o mês de março o que foi um grande alívio para as despesas da nossa família.


No meu caso, a primeira aula era de física ministrada pelo professor Mauro, pessoa bastante fechada, porém com excelente didática e com uma bela capacidade de exposição no quadro negro. Rapidamente, ele foi lecionando por todas as divisões da física, começando por mecânica, termologia, acústica, quando quase no fim do ano chegava à difícil e temida eletricidade.


O professor Mota Barbosa, sempre de paletó e gravata, começava a nossa aula às 20,00 horas. O interessante é que ele praticamente ditava toda a matéria para que nós copiássemos nos nossos cadernos e eu tinha pena do mesmo porquanto aparentemente repetia a mesma aula seis vezes ao dia.


A nossa aula de química se iniciava às 21,00 horas e a princípio o docente era o professor Bulhões, famoso entre todos os vestibulandos, contudo logo no início ao que parece ele teve um desentendimento com o professor Marcionilo Lins, catedrático de Bioquímica das duas faculdades, tendo abandonado todas as atividades docentes naquela instituição logo no início do ano. Para nós foi um susto muito grande porque Bulhões tinha fama de ter vários dos problemas por ele apresentados caindo nas provas de vestibulares passados. Com a saída de Bulhões, a direção do cursinho contratou o jovem professor Admar Soriano que, com a orientação do professor Marcionilo, introduziu um novo sistema de ensino da química, o famigerado CBA que a princípio se apresentava como extremamente complexo para se entender. Por certo, supunha-se que esse novo método seria matéria dos exames na Universidade Federal, contudo pairava a dúvida com respeito ao vestibular da Faculdade de Ciências Médicas, quando se dizia que naquela escola o CBA não seria adotado embora o catedrático de bioquímica fosse o mesmo.


Em meados de dezembro, teve lugar o fim do ano letivo do Colégio Nóbrega e as festividades de despedida do querido educandário. Com o término das aulas no ‘cursinho’ o estudo se tornou frenético, tendo se intensificado após as festividades natalinas e do ano novo, cujas participações, no meu caso, foram reduzidas ao mínimo possível. Para melhor usar as quase 18 horas diárias de dedicação ao grande evento que viria modificar as nossas vidas e delinear o nosso futuro, eu usava o período da manhã para estudar biologia após acordar das poucas horas de sono porquanto poderia estar mais alerta. No turno da tarde resolvia os problemas de física, enquanto as noites eram destinadas para o estudo de química. Essa rotina geralmente terminava por volta das quatro horas da manhã. Ao acordar por volta das nove horas, após um ligeiro dejejum e de rápida leitura do Diário de Pernambuco, iniciava novamente a rotina previamente estabelecida.

Os exames vestibulares de então eram totalmente diferentes dos dias atuais e foram se modificando paulatinamente. Eram mais personalizados e as questões eram elaboradas pelo próprio corpo docente das faculdades cujas congregações ficavam em estado de reunião permanente durante todo o evento, sendo as provas também realizadas nas suas dependências. A Faculdade de Ciências Médicas como possuía na época instalações de menor porte e com menor número de salas de aula, pelo menos no ano que prestei concurso, realizava suas provas no prédio da Faculdade de Medicina da então Universidade do Recife. As questões de química eram na sua maior parte produzidas pelos professores de bioquímica, as de física pelos de biofísica e as de biologia pelos docentes de parasitologia, patologia e microbiologia. Não me recordo quem elaborava as provas de línguas, quando se podia escolher por francês ou inglês, lembrando que exame de línguas não era solicitado na Faculdade de Ciências Médicas.


A faculdade foi dimensionada para receber 80 alunos por ano, fato que se comprovava quando se observava que esse era aproximadamente o número de cadeiras nas salas de aula existentes em cada disciplina lá abrigada. Houve anos em que alguns vestibulandos foram aprovados, mas não classificados, tendo os chamados excedentes sido admitidos após longa batalha inclusive judicial. Por outro lado, na FCM eram admitidos mais ou menos a mesma quantidade de alunos. Na federal, até 1962, o número de ingressos ficou nesse patamar, todavia no vestibular de 1963 chegaram aprovados para a prova de línguas quase que o dobro desse número e nessas circunstâncias a direção da faculdade resolveu endurecer na elaboração dessas provas tendo havido um número recorde de reprovações, fato que nunca acontecera no que concerne as disciplinas em lide. Sabia-se casos de colegas que inclusive chegaram a ter suas cabeças raspadas como era costume na época e dias após terem a decepção de não serem relacionados para a admissão no ano letivo em virtude de terem sido reprovados nas provas de inglês ou francês. A duplicação do número de alunos fez com que muito da dinâmica da programação do curso fosse fundamentalmente modificada e que trouxe profundas e permanentes alterações na grade de ensino. Por isso, a partir do nosso vestibular a direção da universidade entendeu que a duplicação do número de vagas fosse considerada oficial, tendo sido admitidos um pouco mais de 160 colegas, muitos deles reprovados nas provas de língua estrangeira no ano anterior e com alguns agora classificados nos primeiros lugares.


Em 1964 se apresentaram para prestar vestibular na Federal um pouco menos de 1000 candidatos, ao passo que na FCM foram em torno de 700. Ressalte-se que naqueles idos a FCM era ainda particular e se pagava uma mensalidade que embora reduzida, tornava-se inviável para muitos. As provas foram realizadas nas salas de aula da faculdade, inclusive as da FCM que na época ainda não dispunha de instalações para comportar tamanho número de vestibulandos, ressaltando-se que os resultados das provas eram exibidos no quadro de avisos no antigo e imponente casarão da Rua Benfica, sua primeira sede até ser transferida em meados da década de 60 para belas instalações no Hospital Oswaldo Cruz.

Como referido anteriormente, todas as questões eram elaboradas pelos docentes das faculdades que se encarregavam também da sua aplicação, da fiscalização e da correção. Geralmente cada sala era de reponsabilidade de um professor catedrático que auxiliado por seus assistentes faziam a chamada nominal para que pudéssemos adentrar no recinto. Recordo bem que por ocasião da minha primeira prova na Universidade Federal (biologia) o professor Hélio Mendonça era o responsável pela sala e que na de química fui recebido pelo Professor Marcionilo Lins. As provas da FCM geralmente tinham lugar dois a três dias após e todas começavam às 08,00 horas da manhã com término ao meio-dia. Não havia gritaria, algazarra ou tentativas de burlar o certame, tudo decorrendo na mais perfeita ordem, com o silêncio estritamente observado. Acrescente-se que não havia profissionais de segurança nem muito menos policiais. Mesmo os veteranos, sempre propensos a gritar ‘fera burro’, respeitavam aqueles momentos de crucial importância para o nosso futuro, momentos esses pelos mesmos vivenciados poucos anos antes.


As provas eram eliminatórias, embora ao final o caráter classificatório tivesse importância e fosse crucial para a admissão. O intervalo entre elas se situava em torno de uma semana, visto que teriam de ser corrigidas e só aqueles que tivessem nota igual ou superior a quatro eram admitidos no exame seguinte, cujo resultado era colocado no quadro de avisos localizado na secretaria da escola. É inimaginável a tensão e o stress que passávamos tentando achar os nossos nomes no meio de um grande e sofrido número de companheiros se apertando para poder ver a bendita lista. Ainda recordo as fisionomias de tristeza e mesmo desespero daqueles eliminados e como tal alijados do contexto. Um ano de trabalho e sonhos destroçados! Após a última prova a média final era liberada juntamente com a classificação. Na FCM a rotina era a mesma, com as provas das duas escolas geralmente separadas por um intervalo de dois a três dias, com as matérias se alternando, nunca uma prova numa escola era seguida pelo exame da mesma matéria na outra. Corriam vários boatos e rumores sobre as características das provas em cada faculdade e os níveis de dificuldades das mesmas. Alguns afirmavam que física na FCM não era muito difícil, enquanto que química era mais complexa. Por outro lado, se afirmava que na Federal biologia era o grande carrasco e que mais eliminava. Essa impressão foi intensificada pelo fato de que no ano anterior (1963) a taxa de reprovação foi altíssima. Comentava-se muito uma das perguntas mais famosas e emblemáticas, e que demonstrava o grau de dificuldade que acontecera: Em quantas partes se divide a antena de um inseto? Realmente pergunta de suma importância para a nossa futura profissão!


No que diz respeito às provas de língua estrangeira, era entendimento geral que os vestibulandos uma vez chegados naquele estágio nunca eram pelas mesmas desclassificados. Todavia, estávamos todos bastante apreensivos, porque no ano anterior haviam sido reprovados no exame de língua estrangeira 10 a 15 candidatos.
Na Federal as provas foram nessa ordem, biologia, química e física, ao passo que na FCM tivemos física, biologia e química. Recordo que biologia na Federal e física na FCM tiveram lugar antes do carnaval que naquele ano acontecia em início de fevereiro, tendo as restantes marcadas para após os festejos de momo. A princípio pensei em não brincar, porém como me saíra bem nos dois exames iniciais resolvi não perder aquela época tão significativa para nós. Pensei muito ao tomar essa decisão, contudo havia outra razão que me impelia a não permanecer trancado em casa naqueles quatro dias, visto que pretendia solicitar namoro à menina com a qual me casaria. Confesso que fiquei preocupado, mas felizmente tudo saiu a contento em todas as esferas.


Na primeira segunda-feira após a farra carnavalesca voltamos à luta tendo pela frente ainda mais quatro provas e a de línguas. Para aqueles vitoriosos, esgotados, chegamos à prova de línguas na federal e a de química na FCM alguns dias antes. Eu preferi a língua inglesa se bem que durante o curso ginasial eu me saíra muito bem nas aulas de francês. Com um conhecimento limitado da língua saxônica, visto que nunca pudera frequentar cursos particulares específicos eu tirei uma nota baixa, cinco se bem me recordo, o que fez cair bastante a minha média final, o que crucialmente repercutiu bastante na minha classificação final.


A prova de línguas foi realizada no sábado, 29 de fevereiro, pela manhã. Após a mesma, mesmo sem sabermos o resultado, começamos a nos preparar para o esperado e temido trote. Os veteranos rasparam os cabelos dos homens e parte da sobranceira das mulheres. Na verdade, mesmo se eles não quisessem nos tosquiar, nós mesmos nos presentearíamos, pois a vontade e o orgulho de sair pela cidade ostentando a boina verde FMUR era absolutamente enorme. Iniciaram-se os banhos e obviamente o processo de elitização que para alguns, como para mim, não precisava grande quantidade para o processo de intoxicação em razão da extrema fraqueza que aquele exaustivo ano proporcionara. Na FCM não havia desfile pela cidade, apenas o trote e algazarra nas dependências da faculdade.


Os trotes, ou seja, os desfiles pelas ruas do centro em especial pelo bairro de Santo Antônio patrocinados pelos diretórios acadêmicos eram um marco na vida social de então. Bastante famosos na década de 50 e início da década de 60, sendo os mais apreciados os de Medicina, Direito e Engenharia, pela quantidade de jovens que traziam, pelo número de pessoas que se deslocavam principalmente para as Ruas Nova e Imperatriz para assisti-los e principalmente pelas críticas inteligentes e mordazes que faziam aos políticos, gestores, figuras da sociedade, artistas, etc… Além do mais, as senhoritas casadoiras da nossa sociedade preenchiam aquelas artérias para observar os futuros doutores que poderiam se tornar seus namorados e quiçá seus maridos O nosso realizado no último dia de fevereiro, costumo dizer, foi o derradeiro trote livre ocorrido na cidade do Recife em decorrência da Revolução de 1964 que aconteceria um mês após. Nos anos seguintes houve tentativas de organização desses desfiles, mas as críticas ao novo regime foram de pronto rechaçadas pela polícia com o uso da força. Certamente as limitações e a censura impostas pela situação política recém estabelecida foram responsáveis pela extinção dessa tradição que foi progressivamente desaparecendo e em fins da década não mais existia. Na verdade, como pretendo comentar mais adiante em 1965 e 1966, pelo menos na nossa faculdade, houve tentativas de ‘colocação do bloco na rua’, tentativas essas violentamente terminadas pelos agentes policiais.


Tenho bastante nítida na minha memória, pelo menos até um certo ponto, aquela inesquecível e tórrida manhã do ano bissexto de 1964. Tiramos as roupas com as quais fizemos a última prova, colocamos um calção de banho, com muita alegria deixamos que nos raspassem as cabeças, compramos ao diretório as batas brancas com as quais sairíamos para o desfile, fomos ofertados com os tradicionais e pobres ratos brancos retirados dos biotérios da fisiologia e com os quais iríamos amedrontar as moças que estivessem observando o desfile, tomamos as mais variadas conduções e em torno da 11,00 horas nos concentramos na Praça Maciel Pinheiro. Alguns levavam seus próprios meios de ingestão etílica enquanto que outros os adquiriam a partir de um bar ambulante também de propriedade do diretório, cujo lucro era aplicado para pagar as despesas oriundas do desfile e que não deviam ser poucas. Haviam charretes puxadas a cavalos que levavam a rainha do trote e outras princesas, faixas com críticas bem produzidas e inúmeras placas que eram conduzidas pelos feras com os mais variados e por vezes picantes assuntos. Ademais, cada veterano escolhia o seu fera para trazê-lo amarrado e por vezes arrastá-lo quando o pobre aprisionado estivesse dando sinais de cansaço e intoxicação alcoólica. As meninas recebiam também batas e às vezes trajes feitos de estopas e no sentido de embaraça-las era para elas que se reservava carregar as piadas mais mordazes, que para a época as fazia corar de vergonha. Sem dúvida, infelizmente os tempos mudaram visto que aqueles dizeres pouco educados talvez sejam atualmente mencionados em salas de aula, sobremaneira quando tristemente se diz pretender ensinar as crianças sobre sexo ou identidade de gênero.


Após a concentração na Praça Maciel Pinheiro, atravessamos a Rua da Imperatriz, cruzamos a Ponte da Boa Vista e adentramos na Rua Nova que era o ponto alto do desfile. Lá se localizavam as lojas mais sofisticadas da cidade, como a Sloper, a Ethan, a Casa Matos e as sapatarias e camisarias mais elegantes. Naquela artéria se aglomeravam a juventude e as moças da nossa melhor sociedade para ver passar os heróis aprovados na batalha do vestibular. O cortejo penetrava na Pracinha do Diário, dobrava em direção à Avenida Guararapes e se dispersava nas imediações da Ponte Duarte Coelho. Lembro que vi meus orgulhosos pais e meus irmãos na Rua da Imperatriz e minha querida já namorada Alita nas imediações da Matriz de Santo Antônio. Manuseando fotografias do evento, revejo a minha
figura quase que esquálida, com a cabeça parcialmente desprovida de cabelos e parecendo desproporcional ao restante do esqueleto. Os ratos faziam sucesso e proporcionavam correrias das mocinhas que batiam palmas para aqueles que já estavam nos seus corações ou nos seus objetivos de conquista. A minha última recordação daquele memorável píncaro de um esforço de vários anos data de quando me lembro ter visto a loja na TAP no início da Avenida Guararapes, não sei como cheguei em casa, mas ao que fui informado meus pais me coletaram ao final do desfile e só me lembro de ter acordado altas horas da noite com uma tremenda cefaleia.


Como já mencionado, Medicina, Direito e Engenharia eram os que mais atraiam espectadores, porém várias outras faculdades vinham também ao centro para mostrar os seus ‘feras’ e trazer as nem sempre gentis ‘brincadeiras’, trazendo as mais variadas críticas, não poupando professores e nem mesmo dirigentes dos seus estabelecimentos de ensino. Ao que me recordo o trote de Engenharia era o mais agressivo com um posicionamento bastante esquerdista, enquanto que o Direito se ocupava em abordar a problemática social do Brasil e a desigualdade de classes. O nosso era um misto de tudo, todavia havia na época na faculdade uma campanha nacionalista defendendo o petróleo, como também pugnando pela nacionalização de toda a indústria farmacêutica brasileira. Não tenho ideia o que dizia a placa que me deram para carregar, também não consigo me recordar se no nosso trote trazíamos uma banda de música, talvez não porquanto estávamos em plena época na quaresma o que naqueles lustros era por todos respeitada.
Verdade que há quase 60 anos o tráfico do Recife era mínimo quando se compara com os dias de hoje, todavia aqueles desfiles que geralmente tomavam conta do centro da cidade nos períodos vespertinos via de regra entre os meses de fevereiro e início de março, sem dúvida deveriam gerar um grande transtorno para o batalhão de trânsito e para a polícia que tinham de desviar as linhas de ônibus e de fechar várias ruas do concorrido bairro de Santo Antônio.

Acredito que na terça ou quarta-feira seguinte fomos informados que a classificação final havia sido liberada e que estava afixada no quadro de avisos da secretaria da FMUR. Interessantemente, o resultado da FCM saiu no mesmo dia e igualmente afixado no quadro de avisos de belo e tradicional casarão da Rua Benfica. Dirigi-me primeiro à FMUR e no meio do tumulto consegui ver a minha nota. Tinha alcançado a média 7,4 e ficado no quinto lugar, enquanto que o colega Carmélio Costa Câmara obtivera o primeiro lugar com 7,8. Médias extremamente inferiores aos vestibulares de medicina nos dias de hoje. Se não me engano, o segundo lugar fora de Enecy Calixto com 7,7, o terceiro de Rafael Crizantho com 7,6 e o quarto de João Dutra Almeida com 7,5. Corri então para a FCM e constatei também que havia sido aprovado no sétimo lugar, não me recordo com que nota, para fazer com que o remanejamento naquela escola fosse mais rápido e como tal propiciasse que mais colegas fossem rapidamente admitidos no curso médico que já estava prestes a se iniciar, no dia seguinte assinei um documento renunciando a minha vaga naquela faculdade.
E assim se iniciaram novas histórias, novas lutas, vitórias, decepções, alegrias, tristezas, acertos e desacertos…..
Hoje, 60 anos depois daquela segunda feira esplendorosa de março de 1964, ao completarmos 55 anos de formados, com a sensação do dever cumprido, quis compartilhar essa experiencia com todos aqueles que de uma forma ou de outra participaram dessa caminhada.


Hildo R C Azevedo Filho
Apipucos, agosto de 2024